Capítulo 6

Um polícia sem arma

Um polícia sem arma

Regula a água e o lixo e, contactada pela Renascença, nega a existência de um “clima de guerra” com o ministro do Ambiente. Para a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), a palavra “tensão” espelha melhor o relacionamento que tem mantido com o Governo nos últimos meses, que até já levou ao corte de relações entre o presidente da reguladora, Orlando Borges, e Matos Fernandes, até então amigos de longa data.

O episódio mais recente desta “tensão” acabou com o responsável da ERSAR a marcar pontos no braço de ferro com o ministro, quando o conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR) lhe deu razão e obrigou o Governo a revogar a atribuição exclusiva do negócio de recolha de resíduos orgânicos – restos de comida e resíduos de plantas – à EGF, uma empresa da Mota Engil com ligações conhecidas ao PS.

Em causa estava um negócio que pode valer, no mínimo, 60 milhões de euros por ano, referem organizações ligadas ao setor – isto porque, a partir de 2023, os resíduos orgânicos, que representam 40% dos lixos urbanos, passarão a ser recolhidos seletivamente, como já acontece com o plástico, o vidro e o papel. Segundo a ERSAR, a atribuição do negócio à EGF constituía “uma violação do princípio da legalidade”, na prática concedendo “um privilégio restritivo da concorrência a uma empresa que detém 60% dos resíduos urbanos, o que criaria situações de injustiça face aos municípios”, que têm essa competência há mais de 20 anos. Apoiado nestes argumentos, Orlando Borges pediu a anulação do despacho do secretário de Estado do Ambiente, Ataíde das Neves. Quando o Governo fez ouvidos moucos, apresentou uma participação ao Ministério Público.

O caso dos lixos orgânicos veio lançar mais achas para a fogueira, mas o clima de ”tensão” não começou com este caso – a ERSAR e o Ministério do Ambiente já estavam em rota de colisão pelo menos desde abril, explica Orlando Borges à Renascença. “Nessa altura, o Governo entendeu, sem ouvir o regulador, aprovar um diploma que mexia no regime de concessão e exploração do tratamento de resíduos urbanos e que iria transferir poderes do regulador para o Governo, em particular no que toca à fixação de tarifas.”

Esta informação só lhe chegou na véspera de o novo regime ser levado à reunião dos secretários de Estado. “Entendemos fazer chegar à Presidência da República um alerta sobre a ilegalidade e até inconstitucionalidade do diploma” – e Marcelo Rebelo de Sousa não o promulgou.

“Olívia patroa” e “Olívia costureira”

O estatuto de regulador independente atribuído à ERSAR com a lei-quadro de 2013 garantiu que o seu conselho de administração “não pode ser exonerado a belo prazer do Governo”, mas garante pouco mais, refere Orlando Borges. Esta entidade reguladora tem, desde logo, uma característica estrutural que dificulta o separar das águas entre a ERSAR e o Ministério do Ambiente.

Orlando Borges é presidente da ERSAR desde 2015
Orlando Borges é presidente da ERSAR desde 2015
Crédito: Ana Santiago/YouTube

“Temos uma situação original face aos outros reguladores”, explica Orlando Borges. “Somos, ao mesmo tempo, regulador e supervisor e autoridade competente para a água de consumo humano [tudo o que diz respeito à qualidade da água que corre nas torneiras] e, nessa qualidade, temos de facto a tutela do Ministério do Ambiente.”

É uma dupla qualidade de “olívia patroa” e “olívia costureira” que não facilita a autonomia do regulador e não é o único obstáculo à sua independência. Como refere o presidente da entidade à Renascença, “a ERSAR é um polícia sem direito a porte de arma”, já que o seu regime sancionatório está pendente desde 2014, à espera da aprovação do Governo. “Quando não houver cumprimento das nossas decisões, a lei prevê sanções”, explica. “Mas o regime sancionatório nunca passou do papel. E, portanto, a ERSAR toma decisões, há incumprimento e o que é que acontece? Nada!”

Outra incongruência do sistema que condiciona a independência da ERSAR, segundo o seu presidente, ”é o facto de só empresas pagarem a taxa de regulação e os municípios ficarem de fora”. “A proposta para que eles paguem está em cima da mesa, mas o poder político não quer arranjar mais uma fonte de ruído com as autarquias”, acusa Orlando Borges. “Só que está em causa um princípio de equidade.”

Ainda assim, o que mais limita a atividade da ERSAR e põe em causa a sua independência são as cativações, sobretudo porque se somam às regras orçamentais de aquisição de serviços. Em 2017, o total capturado pelo Ministério das Finanças chegou praticamente aos dois milhões de euros e, em 2019, foi superior a um milhão e meio. Na prática, diz o presidente da reguladora, o Governo dá com uma mão e tira com a outra.

“O Ministério do Ambiente não pode chumbar o nosso plano de atividades e respetivo orçamento, que é aprovado pelo Conselho Consultivo”, diz Orlando Borges, “só que depois o ministro das Finanças cativa parte das verbas a favor do Orçamento do Estado e quando dá autorização de descativação é em dezembro: ‘Tomem lá, podem gastar!’ Como se a dias de acabar o ano o dinheiro nos resolvesse algum problema.”

E o que acontece às verbas que transitam de um ano para o outro? Na prática, o regulador nunca mais vê a cor do dinheiro, refere Orlando Borges. “São receitas nossas, pagas pelos consumidores e pelas entidades que regulamos, mas que não podemos usar em benefício do setor porque ficam na posse do Instituto de Gestão Financeira do Estado.” Neste momento, o saldo em verbas transitadas, a favor do Estado, já vai em mais de 15 milhões e meio de euros.

E para além da questão das verbas propriamente ditas, “há a aplicação de regras de utilização orçamental que nos condicionam bastante, por exemplo, na prestação de serviços”, refere. “Se eu tiver vários processos em tribunal, a certa altura estamos limitadíssimos na contratação de advogados para defender causas que são do interesse público. Mesmo tendo as verbas para o fazer, não posso, é uma limitação fortíssima.”

Do outro lado da barricada estão os que criticam a ERSAR dentro do setor, acusada de se “fechar numa torre de marfim” e de “ter um nível de litigância muito alto”. Confrontado com as críticas, Orlando Borges não enfia a carapuça do autoritarismo e responde que “nunca houve nenhuma entidade regulada a quem tenha recusado um pedido de reunião”. Quanto aos processos em tribunal, admite que existem “alguns”, mas fala numa “situação normal entre reguladoras e regulados” e adianta que parte desses processos “é da iniciativa da EGF contra decisões do regulador” – a tal empresa de resíduos a quem Matos Fernandes pretendia atribuir o monopólio da recolha dos biorresíduos e que “está também na origem de uma auditoria que a Inspeção-Geral da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território (IGAMAOT) está a fazer à ERSAR”.

Sobre esse caso concreto, o presidente do regulador diz à Renascença que estranha que “as pressões” lhe tenham chegado também da parte do Governo, que transmitiu à ERSAR a existência de “desconforto” dentro do grupo privado. “Mostrei-me disponível para avaliar o caso e eventuais decisões menos adequadas para com as empresas do grupo”, garante Orlando Borges.

Acima de tudo, e “mesmo com as limitações” impostas à ERSAR, remata Orlando Borges, “se a lei fosse respeitada, teríamos plena capacidade para sermos uma entidade de fiscalização, regulação e supervisão de todas as entidades dos setores da água e resíduos”.

Primeiro capítulo: Os polícias dos mercados
Top