Capítulo 4

A estrela da companhia

A estrela da companhia

A Autoridade da Concorrência (AdC) é o porta-aviões da regulação – pelo valor das coimas que aplica, numa escala sem comparação, e pelas armas de que dispõe para apanhar infratores, entre elas a delação premiada, tão cobiçada pelos procuradores do Ministério Público.

À Renascença, um advogado da área da concorrência explica que a AdC “não é bem um regulador como os outros, não fixa preços, não atua a montante para criar condições de concorrência, embora possa fazer recomendações de política legislativa e promover boas práticas”. Ao contrário das restantes, “a AdC intervém mais como um polícia”, munida de um regime sancionatório europeu e “multas à escala das maiores empresas mundiais que também operam em Portugal”.

E a AdC tem tido mão pesada nos últimos três anos. Só em 2019, já aplicou coimas no valor de mais de 300 milhões de euros, na sequência de sete processos que investigou. A EDP foi condenada a pagar 48 milhões por abuso de posição dominante. No setor dos seguros, a AdC desmantelou um cartel que envolvia a Fidelidade, Lusitânia, Multicare, Seguradoras Unidas e Zurich, tendo aplicado coimas num valor total de 54 milhões de euros. A par disso, também concluiu finalmente a investigação sobre o cartel da banca – um processo que se arrastava desde 2012 e que envolveu 15 instituições financeiras, que durante 11 anos usaram “combinação de preços” na oferta do crédito à habitação, entre outros.

“Ao estarmos mais atuantes, estamos mais dissuasores”, refere Margarida Matos Rosa, que é o rosto da instituição há três anos, em entrevista à Renascença. “Há uma maior probabilidade de as empresas usarem o instituto de clemência que é muito forte, muito poderoso. Termos visibilidade é muito relevante para termos mais denúncias.”

O instituto de clemência referido pela presidente da AdC é uma forma de delação premiada, que os magistrados do Ministério Público gostariam de ter, por facilitar a descoberta do crime, sobretudo económico, mas que lhe tem sido negada por razões ético-políticas.

Delação premiada? Aqui funciona

“O instituto da clemência é um modelo quase decalcado do de outros países e que funciona”, garante Margarida Matos Rosa. “É usado para casos de cartel entre empresas que seriam muito difíceis de descobrir pelos nossos próprios meios. É absolutamente indispensável que continue.”

E como funciona? A presidente da AdC explica que a primeira empresa que apareça a delatar a sua participação num cartel pode beneficiar de clemência total, nomeadamente se trouxer provas concretas de atividade em cartel. As outras que vierem a seguir, se seguirem o exemplo, também podem beneficiar de um perdão significativo – em cerca de metade ou pelo menos 20% do valor das coimas. “Para efeitos de clemência, a ordem de chegada é importante, o reconhecimento dos factos e as provas apresentadas também.”

Foi graças à delação premiada que foi possível descobrir o cartel da banca. O primeiro banco a fazer a denúncia dos factos e a pedir clemência, em novembro de 2012, não foi condenado ao pagamento de qualquer coima. Beneficiou de um perdão total.

Presidente da Autoridade da Concorrência defende que é “absolutamente indispensável” que delação premiada continue
Presidente da Autoridade da Concorrência defende que é “absolutamente indispensável” que delação premiada continue
Crédito: Joana Gonçalves/RR

“O foco da AdC tem sido e continuará a ser a deteção e investigação dos cartéis, porque são as práticas anticoncorrenciais que mais afetam os consumidores, nomeadamente quando lesam o erário público”, adianta Margarida Matos Rosa. ”É aí que depositamos os nossos maiores esforços.”

Ora, foi exatamente na investigação de casos de suspeitas de conluio em procedimentos de contratação pública que a AdC teve de cortar, em 2017, por força das cativações de Mário Centeno. Numa resposta à Assembleia da República, Margarida Matos Rosa admite que foi obrigada a suspender “duas diligências de busca e apreensão previstas perante suspeitas de práticas de conluio em procedimentos de contratação pública”, casos que “se inserem nas prioridades da AdC, por constituírem situações de práticas concertadas e empresas que lesam o Estado e os cidadãos”.

À Renascença, Margarida Matos Rosa argumenta que ”as cativações são negativas, desde logo porque criam um fator de incerteza quanto à plena execução do plano de atividades que é entregue ao Governo e à AR”. Para esse plano de atividades, explica a presidente da AdC, ”é projetado um orçamento com base nas nossas receitas próprias que são estáveis”. O problema, indica, é que “por vezes ao longo do ano tem havido cativações”. A autoridade tem “tentado lidar com essa contingência, para que a atividade de promoção e defesa da concorrência não seja afetada por essa diminuição do orçamento previsto”.

E essas cativações não põem em causa a independência do regulador? ”A intenção não será essa, as cativações são mais um instrumento de gestão do Ministério das Finanças”, responde Margarida Matos Rosa, “mas na prática podem comprometer a independência do regulador”, admite.

A situação não está fácil. E pode ficar pior. A Autoridade da Concorrência tem uma despesa entre os 11 e os 12 milhões de euros. O dinheiro para a custear vem das coimas, mas sobretudo (cerca de 70%) das transferências que são feitas pelos outros reguladores, isto porque se entende que a atividade da AdC é transversal a todas as áreas de regulação. Ora, é previsível que o Governo venha a mexer no cálculo dessas transferências que são a principal fonte de receita própria da AdC.

Essa alteração será feita no âmbito a reforma do regime de supervisão financeira que o ministro Mário Centeno apresentou no final da anterior legislatura e que, sabe-se já, será relançada na atual. Se o Governo não mexer de forma substancial na sua proposta, a AdC passará a contar com a contribuição também do Banco de Portugal, só que deixará de conseguir prever o valor dessas transferências, porque elas deixarão de ter um limite mínimo.

No parecer que deu sobre as mudanças propostas pelo ministro das Finanças, a AdC afirma que “as suas receitas próprias ficam totalmente imprevisíveis, colocando em risco a sua autonomia administrativa e financeira” e “afetando negativamente a sua independência funcional e técnica”.

À Renascença, fonte da regulação setorial adverte ainda que a proposta de Centeno “abre a porta a que os reguladores da área financeira (BdP, CMVM, Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões e o novo Sistema Nacional de Supervisão Financeira) possam vir a disputar competências em matéria de política de concorrência com a AdC”. Para além da “incerteza jurídica”, tal poderá significar na prática que esse regulador “perderá o monopólio da aplicação das coimas por violação das regras da concorrência, que constitui uma das suas fontes de receitas próprias (40% vai para a AdC e 60% para o Estado)”.

Margarida Matos Rosa diz que “resta sempre a possibilidade de a Autoridade da Concorrência passar a depender do Orçamento do Estado, mas não é a desejável em termos de independência”. E lembra que qualquer perda de autonomia estará sempre em contraciclo com as orientações europeias. Até ao início de fevereiro de 2021, Portugal terá de transpor a chamada Diretiva ECN, que não só reforça as competências das autoridades nacionais da concorrência, dando-lhes a possibilidade de aceder a qualquer dispositivo tecnológico, incluindo smartphones, tablets ou servidores em cloud, como também impõe ao Estados-Membros o reforço da independência das autoridades nacionais da concorrência.

Por maiores que sejam as dificuldades que a AdC venha a enfrentar, terá sempre a vantagem de a montante beneficiar da vigilância ativa das entidades europeias sobre a independência da política de concorrência e a jusante de ver as suas decisões julgadas por tribunais especializados – agora não só em primeira instância, mas também em sede de recurso.

Próximo capítulo: Entidade Cobradora da Saúde
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