Capítulo 3

Cativações “ilegais”

Cativações “ilegais”

Susana Coroado decidiu investigar o tema da independência dos reguladores porque, diz, “queria perceber em que medida é que um país onde o Estado sempre teve um papel central, e onde o poder político se habituou a distribuir os lugares da administração pública pelos apoiantes, tinha sido capaz de assimilar a nova realidade das entidades independentes de regulação”.

E a que conclusões chegou? A primeira é que “é visível uma evolução quanto à independência formal”. Mesmo antes da lei-quadro, algumas entidades, como a ERSE e a ANACOM, já tinham estatutos com padrões de exigência de independência, refere a investigadora à Renascença. Contudo, “a lei ainda dá uma grande margem de manobra para influenciar os reguladores”.

Isso é notório com as cativações, que são “uma outra forma de controlar o exercício da regulação”.

“Os reguladores beneficiam de autonomia financeira, no sentido em que não dependem do Orçamento do Estado, têm receitas próprias, mas não são autorizadas a usá-las porque o ministro das Finanças não deixa. Há vários professores de Direito que entendem que as cativações são uma ilegalidade. Mas foram um facto com todos os reguladores durante o anterior Governo de António Costa.”

De facto, Mário Centeno tem cativado milhões às entidades reguladoras nos últimos três anos, usando como argumento o facto de “o legislador atribuir valor reforçado à legislação orçamental relativamente a quaisquer regimes financeiros previstos nos estatutos das entidades abrangidas pela Lei do Enquadramento Orçamental”. Numa resposta ao gabinete do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares sobre as cativações decretadas à CMVM pelo ministro das Finanças em 2017, André Moz Caldas, chefe de gabinete de Mário Centeno, argumentava: “A lei-quadro das entidades reguladoras e os estatutos da CMVM são atos legislativos sem valor reforçado”, ou seja, têm de ceder face ao primado das regras orçamentais.

A questão é controversa e a doutrina divide-se. “O argumento apresentado pelo ministro das Finanças faz todo o sentido jurídico se ignorarmos a Constituição”, defende Domingos Farinho, professor de Direito Público, em entrevista à Renascença. A própria Constituição “prevê que a lei pode criar entidades administrativas independentes”. E assim foi, com a lei-quadro de 2013 a proibir expressamente as cativações no que toca às verbas próprias do regulador.

“Existindo uma independência funcional, é razoável defender que ela pode ficar em perigo se não for acompanhada de uma independência financeira”, aponta o especialista. Isto porque “não é absurdo, em tese, pensar que um Governo pudesse, para limitar a atuação de determinado regulador, cativar de tal modo o seu orçamento que a entidade teria a sua ação limitada”.

Fonte: Dados Comunicados à Assembleia da República

Nenhum dos reguladores acusa o Governo de usar as cativações para deliberadamente limitar o seu poder de intervenção. Contudo, é isso que acaba por acontecer. No caso da CMVM, a cativação de cerca de 12% do total da sua despesa orçamental efetiva, em 2017, “causou problemas de gestão interna muito relevantes que se manifestaram, nomeadamente, ao nível da contratação, na primeira metade do ano, de recursos humanos críticos e ao nível do planeamento e execução do investimento em capacitação para esse ano”, lê-se na resposta a um requerimento apresentado pelo grupo parlamentar do CDS durante a anterior legislatura. Em 2018, as cativações repetiram-se na CMVM, na mesma ordem de grandeza.

Na Autoridade de Supervisão de Seguros e Pensões (ASF), as cativações começaram logo em 2015 com valores capturados ao Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) e ao Fundo de Garantia Automóvel (FGA). Entre 2017 e 2018, as cativações não se cingiram aos dois fundos geridos pela ASF, abarcando também o orçamento específico da reguladora.

Outro dos reguladores mais castigados, em termos absolutos e relativos, tem sido a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes. Em 2017, a AMT sofreu cativações de 37% do orçamento disponível. Em 2018, ainda pior: Mário Centeno cativou-lhe 6,5 milhões, cerca de 28% do seu orçamento global. Importa aqui sublinhar que a AMT é exclusivamente financiada por receitas próprias cobradas às entidades por ela reguladas, não recebendo qualquer verba do Orçamento do Estado. Isto significa que o Governo está a capturar verbas que não estão sob a sua tutela, em violação das legislações nacional e europeia que, em teoria, garantem a independência do regulador face ao poder político.

Em resposta à Assembleia da República, o presidente da AMT não escondeu que as cativações afetaram a sua atividade de uma forma transversal, com “um maior impacto nas fiscalizações e nas auditorias aos operadores, designadamente nos setores dos Centros de Inspeção Técnica de Veículos e das Escolas de Condução, o qual abarca também os centros de exame, bem como nos setores de transporte de mercadorias e do transporte de passageiros”. João Carvalho diz que “os reguladores são obrigados ao cumprimento de regras como se de organismo tutelados se tratassem”, o que representa “um risco sério de captura e de forte condicionamento da sua atividade, de forma pouco visível, mas altamente eficaz na perspetiva do congelamento da sua atividade”.

Todos os reguladores consideram as cativações um atentado à independência e autonomia financeira que a lei-quadro e os seus estatutos lhes atribuem. E nem todos aceitam esta captura de verbas.

Na ERSE, os valores que Centeno cativou em 2016 e 2017 foram descativados, de forma unilateral, pelo regulador, que considerou que o Governo não tem base legal para capturar receitas da própria entidade, “maioritariamente provenientes da comparticipação dos consumidores de eletricidade e gás natural e de coimas aplicadas no âmbito do regime sancionatório”.

Também a ANACOM procedeu, em 2017 e 2018, “ao cancelamento das respetivas cativações no sistema de gestão orçamental da Direção-Geral do Orçamento, por entender que a utilização condicionada das dotações orçamentais [cativações] que lhe eram aplicáveis são incompatíveis com o Direito da União Europeia e com a garantia constitucionalmente consagrada de existência de uma regulação económica independente”.

Há ainda o caso da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC), que foi objeto de cativações de quase 600 mil euros em 2016 e de 728 mil euros em 2017. Nos dois anos, o regulador descativou cerca de metade desse valor sem pedir autorização prévia ao Ministério das Finanças. O argumento? É o que está definido no “estatuto de Entidade Administrativa Independente, que caracteriza o regulador e que encontra espelho na capacidade de gestão autónoma do seu orçamento, a qual é significativamente alargada em matérias de receitas próprias, cuja gestão é da sua exclusiva responsabilidade”.

A par da AMT, as cativações impostas pelo Governo impediram pelo menos outras três entidades reguladoras de realizarem ações de inspeção e outros serviços essenciais de fiscalização. A começar pela Autoridade da Concorrência, que em 2017 foi alvo de cativações que chegaram a 19,2% das despesas orçamentadas, número que, em 2018, subiu para 23% da despesa total da AdC.

Na resposta a um requerimento dos deputados Pedro Mota Soares e Hélder Amaral, a presidente do regulador da concorrência, Margarida Matos Rosa, afirma que, além do impacto sobre as despesas correntes, as cativações impediram várias “diligências de busca adicionais, em novos processos de investigação por práticas restritivas da concorrência previstas para 2017”. Nesse ano, especifica a dirigente, “não foi possível efetuar duas diligências de busca e apreensão previstas, perante suspeitas de práticas de conluio em procedimentos de contratação pública”.

A Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) foi outra das vítimas das cativações sobre o que são as suas próprias receitas – com os constrangimentos orçamentais a “levantarem à ERSAR inúmeras dificuldades no desempenho das suas atribuições e competências”, nomeadamente “a realização de auditorias”.

Já a presidente da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), em resposta ao mesmo requerimento do CDS, revelou que, em 2017, o valor cativado chegou a 23% do seu orçamento global, num valor superior a um milhão e 370 mil euros. De acordo com Sofia Nogueira da Silva, estas cativações “colocaram em risco o pagamento dos salários dos funcionários nos últimos meses” desse ano, com “consequências graves para o desempenho das atividades da ERS, comprometendo a independência” do regulador que tanto esteve em cheque nos últimos meses.

“Apesar de o volume de ações de fiscalização e avaliações periódicas ter sido, em 2017, 37% superior ao do ano anterior, a presença no terreno não se aproximou ainda do que é necessário para haver um verdadeiro efeito de dissuasão no comportamento dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde”.

A ERS revela ainda que as cativações impediram a recuperação definitiva do “histórico de reclamações de utentes dos serviços de saúde” que dão entrada no regulador e “a diminuição da celeridade na análise das reclamações e posterior intervenção regulatória”. A somar às cativações, a reguladora da saúde também foi alvo de “uma redução superior a um milhão e meio de euros no orçamento que propôs aos Ministérios das Finanças e da Saúde, sem que tenha sido informada de forma fundamentada, conforme estipula a lei-quadro das entidades reguladoras”. Para Sofia Nogueira da Silva, são factos que configuram “uma ilegalidade”.

Quando o poder político contorna a lei

Há muitas maneiras de dar a volta ao texto. A atuação do Governo pode passar por mera violação do espírito da lei, aponta Susana Coroado. “O legislador por vezes faz leis, mas depois, na prática, não atua de acordo com o seu espírito.” A investigadora cita o exemplo da norma que proíbe a renovação de mandatos. Em teoria, os administradores só podem ficar um único mandato, para diminuir o risco de, durante o exercício de funções, virem a beneficiar quem os nomeou. “O que aconteceu, aquando da entrada em vigor da lei-quadro, foi que, em alguns reguladores, os governos (aconteceu tanto com o de Passos Coelho como o de António Costa) renovaram o mandato das pessoas que tinham sido nomeadas antes da entrada em vigor da lei, violando claramente o intuito do legislador. Aconteceu na ERSE, com o então presidente Vitor Santos, e também no caso do regulador dos seguros.”

Neste ponto, Paulo Otero defende que “a avaliação sobre a independência das entidades reguladoras não pode ser feita exclusivamente numa lógica jurídico-formal, é preciso atender à factualidade, porque ela é por vezes muito reveladora”. O que por vezes acontece, explica o especialista em Direito Administrativo à Renascença, é que, aquilo que o Governo não pode fazer enquanto órgão da Administração Pública, acaba por fazer por via dos seus poderes legislativos. “Como não pode dar ordens diretas a uma entidade a quem a lei atribui um estatuto de independência, o Governo aprova soluções legislativas que, com uma aparência de generalidade, têm como único propósito resolver uma solução concreta.”

Paulo Otero dá dois exemplos – a habilitação específica para a resolução que o Banco de Portugal aplicou em relação ao BES e a intervenção da entidade reguladora no caso do Montepio. “Neste último caso, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões não tinha poderes para avaliar a idoneidade do presidente da Associação Mutualista Montepio. Mas o Governo aprovou um decreto-lei (Decreto-Lei 37/2019) a que atribuiu o valor de norma interpretativa, para que pudesse ter efeitos retroativos e permitisse assim que o regulador pudesse avaliar da idoneidade de Tomás Correia.” Desta forma, esclarece o professor da Faculdade de Direito de Lisboa, o Governo “criou a ficção jurídica de que, à data da eleição de Tomás Correia, o regulador podia avaliar a sua idoneidade”, o que na opinião do jurista é “juridicamente inválido e constitui uma fraude à lei”.

Próximo capítulo: A estrela da companhia
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