Capítulo 2

Portas giratórias

Portas giratórias

A independência das entidades reguladoras e de supervisão não se afere apenas face ao Governo, mas também em relação aos setores económicos e interesses particulares de quem é regulado – sobretudo porque são os reguladores que definem as regras pelas quais os agentes têm de se pautar.

Essa posição de autoridade exige imparcialidade, sendo incompatível com a transumância de gestores entre as empresas reguladas e as autoridades reguladoras. É aquilo a que os ingleses chamam “revolving doors”, portas giratórias que permitem que os administradores circulem entre as entidades privadas, que o regulador fiscaliza, e o organismo público com poderes decisórios.

Para contornar este problema, foi aprovada na lei-quadro de 2013 uma norma sobre incompatibilidade e impedimentos. Sob essa norma, é exigido regime de exclusividade aos membros do conselho de administração de cada entidade reguladora, impedindo não só que exerçam outras funções de forma cumulativa, mas também que mantenham vínculos profissionais, ainda que suspensos ou inativos, com empresas e organismos sujeitos à sua regulação.

A mesma lei prevê ainda um “período de nojo” de dois anos. Ou seja, depois da cessação do seu mandato, os membros dos conselhos de administração não podem estabelecer qualquer vínculo ou relação contratual com as empresas ou outras entidades destinatárias da atividade da respetiva entidade reguladora nos 24 meses subsequentes.

Esta limitação dá direito ao pagamento de uma compensação. Se não tiver outra fonte de rendimento profissional, o titular tem direito a receber metade do valor que auferia enquanto administrador – uma regalia de que a classe política não beneficia, lembra o secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro, Tiago Antunes, num artigo que escreveu sobre “A Problemática das ‘Revolving Doors’ entre entidades reguladoras e empresas reguladas”.

O regime jurídico de Incompatibilidades e Impedimentos de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos também impede que, findos os mandatos, os seus titulares exerçam cargos em empresas privadas que atuam nos setores por eles tutelados. Contudo, a lei não prevê qualquer tipo de compensação pecuniária. O mesmo acontece com a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que presta contas diretamente à Assembleia da República e que não está subordinada ao regime da lei-quadro – rege-se por um regime próprio que não prevê qualquer tipo de compensação financeira pela inibição imposta aos seus administradores que cessam funções.

Banco de Portugal, a “casa da sogra”

A realidade é muito diferente no que toca a outra entidade reguladora e de supervisão que não é abrangida pelo regime geral da lei-quadro 67/2013. Durante anos, o Banco de Portugal não teve qualquer tipo de mecanismo previsto nos seus estatutos que impedisse ou penalizasse a transferência profissional imediata dos reguladores para cargos de gestão em instituições de crédito.

“No setor da banca”, conclui Tiago Antunes, “é possível – e, de facto, tem sucedido – um movimento giratório entre a regulação e o desempenho das atividades reguladas”. No seu artigo, o atual secretário de Estado-adjunto de Costa cita o caso de José de Matos, que em julho de 2011 transitou diretamente do cargo de vice-governador do Banco de Portugal para presidente da comissão executiva da Caixa Geral de Depósitos (CGD) – daí foi direto para a casa de partida, tornando-se presidente da Valora, a empresa do Banco de Portugal responsável por produzir notas de euro, e mais tarde presidente dos fundos de pensões do banco.

Entre outros casos recentes citados na imprensa contam-se o de Ana Cristina Leal, que deixou o Banco de Portugal em julho de 2013 para integrar, enquanto vogal, a comissão executiva da CGD; e o do atual governador do BdP, Carlos Costa, que anteriormente foi diretor da área internacional do BCP, área essa que mais tarde viria a ser investigada pelo Banco de Portugal.

Não faltam exemplos do trânsito entre a banca privada e a entidade que regula e supervisiona os bancos. Há o caso de Carlos Albuquerque, que abandonou o cargo de diretor do BCP em 2015 para dirigir o Departamento de Supervisão Prudencial do BdP. Ao fim de dois anos, deixou a entidade de supervisão para integrar a equipa de gestão da CGD de Miguel Macedo. Para o seu lugar, entrou Luís Costa Ferreira, que assim regressou ao Banco de Portugal, de onde saíra em 2014 para trabalhar na consultora PwC – a mesma que foi contratada pelo banco central, sem concurso, e que foi escolhida pelo Novo Banco para realizar uma auditoria à gestão anterior. Na altura, com Costa Ferreira saiu para a consultora o seu diretor-adjunto, Pedro Machado.

Em três anos, Pedro Machado saltou do BdP para o Governo, regressou ao banco central e depois saiu para a consultora privada: depois de deixar o banco central em 2001 como técnico qualificado e sem qualquer cargo dirigente, e já depois de ter sido chefe de gabinete de Vítor Gaspar no Governo, Pedro Machado voltou ao Banco de Portugal como diretor-adjunto do Departamento de Supervisão Prudencial, de onde acabaria por sair com Costa Ferreira para a PwC e desta de novo para o banco central, em 2017, onde passou a liderar o departamento jurídico.

Outro caso, citado no livro de Ascenso Simões sobre “regulação e supervisão”, é o de Margarida Corrêa de Aguiar. Secretária de Estado da Segurança Social no Governo de Durão Barroso, deixou a administração da ERSE (onde esteve entre 2004 e 2009) e regressou, enquanto diretora, ao Banco de Portugal, onde antes tinha gerido o fundo de pensões. “Passados poucos meses, era administradora da Brisa, mantendo-se como assessora do banco”, aponta o deputado socialista. Em maio deste ano, foi nomeada presidente de outro regulador setorial: a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões.

Há ainda o caso de João Costa Pinto, que desde 2014 está à frente da comissão de auditoria do Banco de Portugal e que foi designado pelo atual governador para liderar a avaliação da ação do banco central na supervisão do BES. Antes disso, tinha sido vice-governador do BdP (quando era António de Sousa o governador) e, antes, presidente de duas entidades reguladas pelo banco central: o Banco Nacional Ultramarino, que acabaria integrado na CGD, e a Caixa de Crédito Agrícola.

“Uma patologia” que abre caminho à corrupção

À Renascença, Ascenso Simões repete as ideias fortes que destacou no seu livro de 2018, “Regulação e Supervisão em Portugal”, onde fala em “erros gravíssimos” no Banco de Portugal, cuja “gestão é paroquial” e onde “grassa a incompetência e o amiguismo”.

“As portas giratórias entre reguladores e regulados criam uma cultura em que todos se comportam da mesma forma e, portanto, policiam pouco, não detetam os problemas e não desconfiam dos amigos” - Susana Coroado

Susana Coroado admite à Renascença que “há uma cultura de promiscuidade” no setor financeiro mais do que em qualquer outro setor de regulação. A investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa lembra que, “no processo legislativo de consulta da lei-quadro, foram as reguladoras financeiras [CMVM e ASF] que mais se opuseram, nos seus pareceres, à ideia de ser imposto um ‘período de nojo’ ao titular de uma entidade reguladora ou de supervisão quando cessa funções”.

O argumento é sempre o da dificuldade em recrutar pessoas fora das áreas que são objeto de regulação. Mas esta é uma realidade que põe em causa a própria função de policiamento das entidades reguladoras. “As portas giratórias entre reguladores e regulados criam uma cultura em que todos se comportam da mesma forma e, portanto, policiam pouco, não detetam os problemas e não desconfiam dos amigos”, alerta Susana Coroado.

“Implicitamente”, aponta, foi isso que Vítor Constâncio reconheceu quando declarou no Parlamento: “Oliveira e Costa era meu amigo. Eu alguma vez ia desconfiar dele?” “O problema é um dia sermos colegas e no outro sermos supervisores”, remata Coroado. “Há relatórios quer do FMI, quer do BCE, a denunciar que em setores onde há muitas portas giratórias, há falhas na supervisão.”

Este mesmo alerta sobre o potencial risco das portas giratórias foi repetido várias vezes pela ex-diretora do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP), alguém que fez da corrupção o combate da sua vida profissional. Segundo Maria José Morgado, em declarações públicas, o fenómeno em si não é corrupção. Ainda assim, funciona como “uma espécie de húmus que cria terreno favorável” ao problema, “ao estabelecer uma patologia”.

Banco de Portugal defende que tem novo regime de ética e conduta desde 2013
Banco de Portugal defende que tem novo regime de ética e conduta desde 2013
Crédito: DR

Confrontada pela Renascença, fonte oficial do Banco de Portugal defende-se, dizendo que “desde final de 2013 está em vigor um novo regime de ética e conduta com vista a diminuir o risco de conflito de interesses associado quer ao termo quer ao início do mandato, tanto para administradores como para gestores de topo”.

Mas porque é que só agora foram postas trancas na porta? “Porque o regime abrange não só os administradores, mas também os diretores”, diz a fonte do BdP, quando estes últimos têm uma relação contratual com o banco central, logo não lhes podem ser impostas limitações à atividade profissional futura sem o seu consentimento.

Ao contrário dos administradores, que são nomeados para exercerem um mandato, os gestores de topo são trabalhadores e o banco central é a sua entidade patronal. Por esse motivo, adianta a fonte, “o BdP teve de negociar com eles a assinatura de um pacto em que assumem o compromisso de, após a cessação do seu contrato de trabalho, não estabelecerem qualquer vínculo ou relação contratual com entidades sujeitas à supervisão do BdP ou em cuja supervisão o banco participe no âmbito do Mecanismo Europeu de Supervisão ou ainda inseridas em grupos controlados por essas entidades. Essas negociações com todos os trabalhadores com cargos de gestão de topo só ficaram concluídas no final de 2018”.

A mesma fonte argumenta que, “no caso dos administradores, o risco de conflito de interesses associado ao fim do mandato está também acautelado pelo respetivo Código de Conduta, o qual são obrigados a subscrever no momento da tomada de posse”.

Aprovado em 2016, o Código de Conduta prevê que, nos dois anos a seguir a cessarem funções, os administradores devem continuar a “evitar qualquer conflito de interesses resultante da nova atividade privada ou profissional, remunerada ou não, e devem informar por escrito a Comissão de Ética sempre que tiverem a intenção de iniciar tais atividades, solicitando o seu parecer, antes de assumirem qualquer compromisso”. Também define que, durante o mesmo período, não podem “desempenhar qualquer atividade ou prestar serviços, remunerados ou não, em entidades sujeitas à supervisão do banco ou em cuja supervisão o banco participe no âmbito do Mecanismo Único de Supervisão, bem como em grupos de empresas controlados por tais entidades. Isto, sem prejuízo do desempenho de atividades ou do exercício de funções no âmbito da situação profissional que ocupavam à data da sua designação, devendo informar por escrito a Comissão de Ética e ficando sujeitos, quando tal suceda, ao dever de segredo e à proibição de uso ilegítimo de informação privilegiada a que tenham tido acesso por causa ou no exercício das suas funções.”

A fonte do Banco de Portugal garante à Renascença que, sob este código e ao contrário do que acontecia antes, “as regras são agora de cumprimento obrigatório e o BdP considera-as muito importantes para a sua credibilidade”, sendo que “vão até além do que é exigido pelo Banco Central Europeu” e que “o controlo é feito por uma comissão de ética formada por antigos gestores do BdP”.

Conflitos de interesses

Até à data, a comissão de ética do Banco de Portugal já impediu três dirigentes de exercerem novas funções. O caso mais falado foi o de Carlos Albuquerque, ex-diretor do Departamento de Supervisão Prudencial, que pretendia sair do regulador diretamente para a administração da Caixa Geral de Depósitos. O BdP sujeitou-o a uma espera de seis meses, durante os quais continuou, contudo, a ser pago pelo regulador.

O processo mais recente é o de António Varela, que saiu do Banif diretamente para administrador do regulador, onde esteve entre 2014 e 2016. Entretanto, foi eleito para os órgãos sociais da Caixa de Crédito Agrícola, mas o BdP considerou que o ex-administrador, que chegou a ser apontado como sucessor de Carlos Costa, tinha um conflito de interesses. Em causa estava a sua carteira de títulos, nomeadamente o facto de deter 50% de uma startup, a Netinvoice, de intermediação de compra e venda de faturas passadas por empresas de pequena dimensão, e que começou por ter o Banco CTT como principal parceiro.

Carlos Albuquerque esperou seis para entrar na administração da CGD, sempre a receber salário do Banco de Portugal
Carlos Albuquerque esperou seis para entrar na administração da CGD, sempre a receber salário do Banco de Portugal
Crédito: António Cotrim/Lusa

Dúvidas já tinham sido suscitadas quanto a eventuais conflitos de interesse relacionados com o portefólio de investimentos de António Varela, aquando da sua nomeação para o Banco de Portugal. No entanto, não impediram a sua entrada em funções como administrador do supervisor financeiro. Na declaração que apresentou no Tribunal Constitucional em setembro de 2014, consultada pela Renascença, António Varela revelava uma extensa lista de investimentos no setor financeiro, nomeadamente ações do Santander, do BCP, do Deutsche Bank e do Banif, entre outros.

Da mesma forma, também a carteira de títulos de Elisa Ferreira não parece ter suscitado problemas no Banco de Portugal, onde foi vice-presidente. Mas já este ano, o conflito de interesses foi suscitado durante as audições da portuguesa após António Costa a ter escolhido para integrar a Comissão Europeia de Ursula Von der Leyen. A agora comissária europeia da Coesão e Reformas foi questionada pela comissão dos assuntos jurídicos do Parlamento Europeu sobre as ações que detinha no grupo Sonae SGPS. Elisa Ferreira acabou por vender os títulos. Um mês antes da sua nomeação para o executivo comunitário, já tinha vendido também produtos financeiros que detinha no ING Bank NV, um banco holandês que tem sucursal em Portugal. A informação consta da declaração de rendimentos que entregou ao Tribunal Constitucional e que a Renascença consultou.

Dos atuais administradores do Banco de Portugal, Hélder Rosalino regista na sua declaração no Constitucional a propriedade de Fundos de Investimento Eurofinanceiros Millenium BCP, no valor de mais de 12 mil euros, e Acções Portugal de cerca de 4.500 euros. O presidente do BdP, Carlos Costa, apenas declara cerca de 28 mil euros em Seguros de Capitalização do Millenium CP, além de outros produtos financeiros sem relevância do ponto de vista de um eventual conflito de interesses. Paula Serra declara mil ações Pharol à guarda do BPI. Manuel Sanches Laginha de Sousa, administrador do banco central desde 2017 e anteriormente administrador executivo de várias sociedade dos grupo CGDP, é proprietário de uma vasta carteira de títulos, incluindo inúmeros investimentos no setor financeiro, como o Fundo de Investimento Santander Ibérica (30 mil euros), o Fundo de Investimento Mobiliário Santander Global (5 mil euros), o Fundo Multi Santander Totta (330 mil euros), Obrigações Subordinadas da CGDP (10 mil euros) e Obrigações Santander (10 mil euros).

Os membros da administração do BdP não têm qualquer impedimento relativamente à sua carteira de títulos, mesmo que estejam em causa ações de bancos sob a sua supervisão. Não estão proibidos de deter ações nem obrigações, desde que adquiridas antes da tomada de posse ou antes da entrada em vigor do Código de Conduta, ou cuja propriedade tenha sido adquirida por herança ou doação. Só estão proibidos de os transacionar enquanto estiverem em funções, como impõe o regulamento da Comissão de Ética e dos Deveres Gerais de Conduta dos Trabalhadores e também o Código de Conduta dos Membros do Conselho de Administração. Esses títulos e o restante património e cargos sociais têm de constar da declaração de rendimentos que são obrigados a entregar no TC, no prazo de 60 dias a contar do início do exercício das respetivas funções, enquanto titulares de cargos públicos.

Embora as regras do BdP tenham sido inspiradas nas normas éticas e deontológicas criadas pelo BCE para os seus altos responsáveis e para o Eurosistema, no caso da entidade europeia o grau de transparência e exigência é bastante superior. O Código de Conduta dos Altos Responsáveis do Banco Central Europeu exige que quer os membros do Conselho Geral, onde têm assento os governadores, quer os vice-governadores que fazem parte do Conselho de Supervisão, “apresentem todos os anos uma declaração de interesses, com informações sobre a sua atividade profissional anterior, atividades privadas, mandatos oficiais e interesses financeiros, bem como sobre a atividade profissional remunerada do respetivo cônjuge ou parceiro que possam suscitar questões de conflitos de interesses”. Essas declarações são publicadas no site do BCE, permitindo que qualquer pessoa possa consultá-las.

Pelo contrário, os administradores do BdP apenas estão obrigados a depositar no TC a sua declaração de rendimentos, património e cargos sociais sempre que iniciam e cessam funções ou quando o seu património sofre um incremento equivalente a 50 salários mínimos – exigências comuns a todos os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos.

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