Capítulo 5

Entidade Cobradora da Saúde

Entidade Cobradora da Saúde

Há menos de um mês esteve sob os holofotes da comunicação social, por causa do caso do bebé que nasceu em Setúbal sem rosto, sem parte do crânio e sem queixo, malformações aparentemente não detetadas nas ecografias ao longo da gestação. Terá sido uma das raras vezes em que a maioria dos portugueses ouviu falar na Entidade Reguladora da Saúde (ERS), cuja presidente se recusou a falar com a Renascença para esta reportagem.

Já os prestadores de cuidados de saúde conhecem bem a ERS e não têm boa opinião. O bastonário da Ordem dos Dentistas chama-lhe “Entidade Cobradora da Saúde”, pelo “falhanço” na regulação e não só. “A ERS deveria servir para registar os prestadores de saúde, regular a sua concorrência, a publicidade, e absorver as queixas dos utilizadores”, aponta Orlando Monteiro da Silva à Renascença. “Contudo, tem tido lacunas enormes, mais evidentes numas áreas do que noutras. Está orientada, sobretudo, para a cobrança das taxas e registos de valor normalmente bastante elevado.” Apesar do seu estatuto de entidade administrativa independente, “na prática é um angariador de fundos para o Estado”, acusa o bastonário, explicando que, em 2018, “a ERS sofreu cativações na ordem dos oito milhões de euros, dinheiro das receitas próprias do regulador que foram indevidamente canalizadas para o Orçamento do Estado.”

“Quem acaba por pagar é o utente”, diz Bastonário dos Dentistas sobre taxas e coimas cobradas pelo regulador
“Quem acaba por pagar é o utente”, diz Bastonário dos Dentistas sobre taxas e coimas cobradas pelo regulador
Tiago Petinga/Lusa

Peguemos no caso de um dentista com apenas um assistente e um pequeno consultório, que paga mil euros para o conseguir registar. Este dentista terá de pagar, todos os anos, 900 euros ao regulador da saúde, explica Orlando Monteiro da Silva. “No fim, quem acaba por pagar é o utente da saúde. A medicina acaba por ficar mais cara para os portugueses, nomeadamente em áreas que praticamente não têm oferta no SNS, como é o caso da medicina dentária.”

O bastonário dos dentistas cita outros exemplos do que diz serem os “falhanços” da ERS, como a questão do registo dos estabelecimentos de saúde e outros. “Quem quiser ir pesquisar um consultório e quiser saber quem lá trabalho, o nome do diretor clínico, que convenções tem, não encontra qualquer informação disponível. Isso é função da Entidade Reguladora da Saúde; tal como é função da ERS supervisionar a utilização da publicidade onde impera a lei da selva, usa-se todo o tipo de tropelias para enganar as pessoas, prometendo-lhes tratamentos milagrosos; tal como é função da ERS impedir que continuemos a assistir a redes de consultórios que fecham um dia e no outro voltam a abrir com outro nome, deixando os doentes pendurados.”

Sobre a recetividade da reguladora para receber críticas e queixas dos regulados, Orlando Monteiro da Silva responde: “Com as anteriores administrações da ERS ainda havia alguma colaboração com as Ordens. Mas com a atual presidente, Sofia Nogueira da Silva, não há cooperação institucional, o diálogo é muito medíocre, a informação é opaca”, acusa. A Renascença tentou falar com Sofia Nogueira da Silva por diversas vezes, mas os pedidos de entrevista foram recusados pela presidente da ERS.

À falta de diálogo institucional acresce aquilo que o bastonário da Ordem dos Dentistas diz ser a situação de conflito de interesses em que o regulador vive. “Não devia ser a mesma entidade a licenciar e a fiscalizar, a aplicar coimas e a atribuir classificações aos estabelecimentos de saúde. O que se passa, na prática, é que o regulador da saúde é impiedoso com os fracos e complacente com os mais fortes, nomeadamente com os seguros e planos de saúde, onde a confusão está instalada. As regras têm de ser iguais para todos, como é praticado desde sempre na autorregulação feita pelas Ordens profissionais.”

Orlando Monteiro da Silva não está sozinho nas críticas ao regulador. Questionado sobre a atuação da ERS, Miguel Guimarães começa por recordar à Renascença o que disse aos médicos quando se candidatou a bastonário da Ordem dos Médicos: “A Entidade Reguladora da Saúde não serve para nada, a não ser para cobrar dinheiro aos profissionais e às unidades de saúde, que alimentam uma estrutura que depois não cumpre as suas funções. Se dúvidas houvesse, aí está o exemplo da Ecosado, a clínica onde foram feitas as ecografias ao bebé sem rosto, para comprovar a inutilidade da ERS.”

Regulador da saúde “só serve para cobrar dinheiro”, acusa Bastonário dos Médicos
“Quem acaba por pagar é o utente”, diz Bastonário dos Dentistas sobre taxas e coimas cobradas pelo regulador
Crédito: António Cotrim/Lusa

Uma auditoria do Tribunal de Contas (TC), divulgada em 2017, revela que “as receitas da ERS suplantam em muito as suas despesas, o que pode indicar que as taxas que cobra aos prestadores de saúde serão demasiado elevadas”. De acordo com a entidade que fiscaliza e controla as contas públicas, “as taxas pagas pelos prestadores de saúde (7,7 milhões de euros em 2015) são substancialmente superiores aos custos operacionais”. Por esse motivo, o TC recomendou aos Ministérios da Saúde e das Finanças uma revisão dos valores cobrados aos regulados, para que não acabem por se refletir nos preços suportados pelos utentes. A recomendação caiu em saco roto.

Ainda de acordo com a auditoria do TC, em 2015 a ERS tinha uma acumulação de excedentes de tesouraria na ordem dos 16,9 milhões de euros, montante suficiente “para financiar a sua atividade durante quatro anos”. E essa não foi a única situação anómala detetada – o tribunal encontrou ainda um quadro de pessoal com um dirigente por funcionário. Isto para além de o presidente ser suspeito de ter usado a viatura de serviço para fins pessoais entre outubro de 2010 e junho de 2016, para deslocações entre a sua residência, o local de trabalho e os estabelecimentos de ensino onde dava aulas. O presidente da ERS era Jorge Simões, marido da atual ministra da Saúde, Marta Temido. Por causa das irregularidades detetadas sob a sua gestão, Jorge Simões teve de pagar uma multa de 21 mil euros.

O marido da atual ministra da Saúde foi presidente da ERS entre 2010 e 2016
O marido da atual ministra da Saúde foi presidente da ERS entre 2010 e 2016
Crédito: Universidade Nova de Lisboa

No livro “Regulação e Supervisão em Portugal”, Ascenso Simões refere que a ERS é um mero “licenciador” e “centro de estudos”, que “faz relatórios a avaliar a qualidade dos cuidados de saúde prestados, mas não passa daí”. No fundo, o regulador da Saúde “faz o diagnóstico, mas não a prescrição do medicamento”. Para além disso, refere o deputado socialista, é “impraticável” regular um universo tão vasto como o deste setor – ou seja, “todos os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, do setor público, privado, cooperativo e social, independentemente da sua natureza jurídica, nomeadamente hospitais, clínicas, centros de saúde, consultórios, laboratórios de análises clínicas, equipamentos ou unidades de telemedicina, unidades móveis de saúde e termas”.

Além destas “incompatibilidades práticas”, Ascenso Simões refere à Renascença que a entidade tem “limitações genéricas”, que decorrem da coordenação e conjugação dos órgãos próprios do Ministério da Saúde, como a Direção-Geral da Saúde, a Administração Geral da Saúde, a Administração Central do Sistema de Saúde, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde e as administrações regionais de saúde”. Também defende que a ERS, “apesar do estatuto de entidade administrativa que a lei lhe confere, na prática não passa de mais um organismo sob a tutela do Ministério da Saúde”. E sublinha que, por algum motivo, “a lei orgânica do Ministério da Saúde considerava a ERS independente no exercício das suas funções, mas estando sujeita à tutela do Ministério”.

Próximo capítulo: Um polícia sem arma
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