
Há menos de um mês esteve sob os holofotes da comunicação social, por causa do caso do bebé que nasceu em Setúbal sem rosto, sem parte do crânio e sem queixo, malformações aparentemente não detetadas nas ecografias ao longo da gestação. Terá sido uma das raras vezes em que a maioria dos portugueses ouviu falar na Entidade Reguladora da Saúde (ERS), cuja presidente se recusou a falar com a Renascença para esta reportagem.
Já os prestadores de cuidados de saúde conhecem bem a ERS e não têm boa opinião. O bastonário da Ordem dos Dentistas chama-lhe “Entidade Cobradora da Saúde”, pelo “falhanço” na regulação e não só. “A ERS deveria servir para registar os prestadores de saúde, regular a sua concorrência, a publicidade, e absorver as queixas dos utilizadores”, aponta Orlando Monteiro da Silva à Renascença. “Contudo, tem tido lacunas enormes, mais evidentes numas áreas do que noutras. Está orientada, sobretudo, para a cobrança das taxas e registos de valor normalmente bastante elevado.” Apesar do seu estatuto de entidade administrativa independente, “na prática é um angariador de fundos para o Estado”, acusa o bastonário, explicando que, em 2018, “a ERS sofreu cativações na ordem dos oito milhões de euros, dinheiro das receitas próprias do regulador que foram indevidamente canalizadas para o Orçamento do Estado.”

Tiago Petinga/Lusa
Peguemos no caso de um dentista com apenas um assistente e um pequeno consultório, que paga mil euros para o conseguir registar. Este dentista terá de pagar, todos os anos, 900 euros ao regulador da saúde, explica Orlando Monteiro da Silva. “No fim, quem acaba por pagar é o utente da saúde. A medicina acaba por ficar mais cara para os portugueses, nomeadamente em áreas que praticamente não têm oferta no SNS, como é o caso da medicina dentária.”
O bastonário dos dentistas cita outros exemplos do que diz serem os “falhanços” da ERS, como a questão do registo dos estabelecimentos de saúde e outros. “Quem quiser ir pesquisar um consultório e quiser saber quem lá trabalho, o nome do diretor clínico, que convenções tem, não encontra qualquer informação disponível. Isso é função da Entidade Reguladora da Saúde; tal como é função da ERS supervisionar a utilização da publicidade onde impera a lei da selva, usa-se todo o tipo de tropelias para enganar as pessoas, prometendo-lhes tratamentos milagrosos; tal como é função da ERS impedir que continuemos a assistir a redes de consultórios que fecham um dia e no outro voltam a abrir com outro nome, deixando os doentes pendurados.”
Sobre a recetividade da reguladora para receber críticas e queixas dos regulados, Orlando Monteiro da Silva responde: “Com as anteriores administrações da ERS ainda havia alguma colaboração com as Ordens. Mas com a atual presidente, Sofia Nogueira da Silva, não há cooperação institucional, o diálogo é muito medíocre, a informação é opaca”, acusa. A Renascença tentou falar com Sofia Nogueira da Silva por diversas vezes, mas os pedidos de entrevista foram recusados pela presidente da ERS.
À falta de diálogo institucional acresce aquilo que o bastonário da Ordem dos Dentistas diz ser a situação de conflito de interesses em que o regulador vive. “Não devia ser a mesma entidade a licenciar e a fiscalizar, a aplicar coimas e a atribuir classificações aos estabelecimentos de saúde. O que se passa, na prática, é que o regulador da saúde é impiedoso com os fracos e complacente com os mais fortes, nomeadamente com os seguros e planos de saúde, onde a confusão está instalada. As regras têm de ser iguais para todos, como é praticado desde sempre na autorregulação feita pelas Ordens profissionais.”
Orlando Monteiro da Silva não está sozinho nas críticas ao regulador. Questionado sobre a atuação da ERS, Miguel Guimarães começa por recordar à Renascença o que disse aos médicos quando se candidatou a bastonário da Ordem dos Médicos: “A Entidade Reguladora da Saúde não serve para nada, a não ser para cobrar dinheiro aos profissionais e às unidades de saúde, que alimentam uma estrutura que depois não cumpre as suas funções. Se dúvidas houvesse, aí está o exemplo da Ecosado, a clínica onde foram feitas as ecografias ao bebé sem rosto, para comprovar a inutilidade da ERS.”

Crédito: António Cotrim/Lusa
Uma auditoria do Tribunal de Contas (TC), divulgada em 2017, revela que “as receitas da ERS suplantam em muito as suas despesas, o que pode indicar que as taxas que cobra aos prestadores de saúde serão demasiado elevadas”. De acordo com a entidade que fiscaliza e controla as contas públicas, “as taxas pagas pelos prestadores de saúde (7,7 milhões de euros em 2015) são substancialmente superiores aos custos operacionais”. Por esse motivo, o TC recomendou aos Ministérios da Saúde e das Finanças uma revisão dos valores cobrados aos regulados, para que não acabem por se refletir nos preços suportados pelos utentes. A recomendação caiu em saco roto.
Ainda de acordo com a auditoria do TC, em 2015 a ERS tinha uma acumulação de excedentes de tesouraria na ordem dos 16,9 milhões de euros, montante suficiente “para financiar a sua atividade durante quatro anos”. E essa não foi a única situação anómala detetada – o tribunal encontrou ainda um quadro de pessoal com um dirigente por funcionário. Isto para além de o presidente ser suspeito de ter usado a viatura de serviço para fins pessoais entre outubro de 2010 e junho de 2016, para deslocações entre a sua residência, o local de trabalho e os estabelecimentos de ensino onde dava aulas. O presidente da ERS era Jorge Simões, marido da atual ministra da Saúde, Marta Temido. Por causa das irregularidades detetadas sob a sua gestão, Jorge Simões teve de pagar uma multa de 21 mil euros.

Crédito: Universidade Nova de Lisboa
No livro “Regulação e Supervisão em Portugal”, Ascenso Simões refere que a ERS é um mero “licenciador” e “centro de estudos”, que “faz relatórios a avaliar a qualidade dos cuidados de saúde prestados, mas não passa daí”. No fundo, o regulador da Saúde “faz o diagnóstico, mas não a prescrição do medicamento”. Para além disso, refere o deputado socialista, é “impraticável” regular um universo tão vasto como o deste setor – ou seja, “todos os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, do setor público, privado, cooperativo e social, independentemente da sua natureza jurídica, nomeadamente hospitais, clínicas, centros de saúde, consultórios, laboratórios de análises clínicas, equipamentos ou unidades de telemedicina, unidades móveis de saúde e termas”.
Além destas “incompatibilidades práticas”, Ascenso Simões refere à Renascença que a entidade tem “limitações genéricas”, que decorrem da coordenação e conjugação dos órgãos próprios do Ministério da Saúde, como a Direção-Geral da Saúde, a Administração Geral da Saúde, a Administração Central do Sistema de Saúde, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde e as administrações regionais de saúde”. Também defende que a ERS, “apesar do estatuto de entidade administrativa que a lei lhe confere, na prática não passa de mais um organismo sob a tutela do Ministério da Saúde”. E sublinha que, por algum motivo, “a lei orgânica do Ministério da Saúde considerava a ERS independente no exercício das suas funções, mas estando sujeita à tutela do Ministério”.