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ENTREVISTA A KARIN WALL

Crianças vão pagar a maior factura da crise

Dominadas pela incerteza, sem um "discurso de esperança" que ajude a encarar como temporária a fase difícil que atravessam, as famílias portuguesas adoptaram uma estratégia defensiva. O resultado mais visível é a quebra ainda mais acentuada da natalidade, mas os efeitos mais graves, acredita a socióloga Karin Wall, vão sentir-se nos que estão a crescer agora e que são já a faixa com risco de pobreza mais elevado.


Há mais de 30 anos a estudar as famílias e as políticas sociais, a coordenadora do Observatório das Famílias e das Políticas de Família, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, viu o país fazer um percurso tímido, muito lento, para começar a garantir um pacote mínimo de apoio às famílias. Nos últimos três anos, a ruptura com esse caminho foi "tão grave" que, sublinha, será difícil estancar os danos.

Cabe ao Estado garantir mais segurança às famílias, para que tenham os filhos desejados?

A promoção da natalidade depende de um contrato implícito de co-responsabilidade entre o Estado e as famílias. As famílias têm de assegurar certas condições e o Estado pode apoiar as famílias nessa sua função. Ao longo das últimas décadas, o Estado português - o Governo, mas também o poder local - tem tentado assegurar um pacote mínimo de condições para apoiar as famílias.

"Nos últimos três anos, houve uma ruptura com o desenvolvimento das políticas de família"

Durante o período de intervenção externa, o que aconteceu a essas políticas de família?

Ao longo das últimas décadas houve uma evolução, que foi lenta, mas representou, de facto, maior apoio para as famílias. Nos últimos três anos, houve uma ruptura com esse desenvolvimento das políticas de família. E a vários níveis. Repare que quando as famílias falam daquilo que é mais importante para ter uma criança referem em primeiro lugar as razões económicas - condições de acesso ao emprego, aos rendimentos e a uma certa segurança material. Depois é que vêm as razões ligadas à conciliação família-trabalho.

Custos financeiros são o maior travão para ter filhos

Houve uma certa ruptura com este modelo. O apoio, do ponto de vista do abono de família, foi reduzido substancialmente porque o 4º e o 5º escalão desaparece, mas houve outras medidas. Por exemplo, a majoração em 25% para o 1º e 2º escalão também desaparece, o 13º mês que era dado às famílias para ajudar nas despesas com a educação também desaparece, os passes escolares também foram muito reduzidos - numa família do 2º escalão, que são famílias bastante pobres, em que cada cônjuge ganha pouco mais que o salário mínimo, o passe escolar é subsidiado só em 25%. Os benefícios fiscais também foram substancialmente reduzidos.

"São as crianças que têm o risco de pobreza mais elevado, neste momento, em Portugal. Não são os idosos, são as crianças"

Passamos de um modelo em que as famílias com rendimentos médios/baixos também tinham abono de família e um apoio económico para uma situação em que apenas as famílias muito pobres têm um apoio económico substancial.

Qual o impacto destas alterações?

São as crianças que têm o risco de pobreza mais elevado, neste momento, em Portugal. Não são os idosos, são as crianças. Claro que as transferências do Estado para as famílias continuam a fazer diminuir o risco de pobreza, mas é uma perspectiva mais assistencialista.

Numa época de crise, em que há mais famílias nessa situação de pobreza e de desemprego, houve uma redução. Não foram só os cortes no abono, houve uma perturbação no acesso a esses subsídios.

Famílias com crianças correm o maior risco de pobreza

Isso afecta a natalidade, mas também esta incerteza sobre quem é que tem direito, afinal, e os critérios também mudaram. Criou-se uma relação de pouca confiança entre as famílias e o Estado.

"Estamos num vazio de tutela em termos de política de família. E isso nota-se. Não se fala da família"

Neste momento, estamos num vazio de tutela em termos de política de família. E isso nota-se. Não se fala da família. Falou-se recentemente da natalidade, mas o discurso sobre a família está subsumido num discurso sobre o apoio às famílias vulneráveis - não é a família enquanto conceito, mas apenas o conceito de pobreza e de vulnerabilidade. Isso não chega para as famílias sentirem que estão a ser apoiadas. Não há sequer uma retórica, um esforço para dar alguma esperança e para mostrar que o Estado continua a interessar-se pelas famílias e pelo seu bem-estar.

Passa-se a mensagem de que a única preocupação do Estado é com a sustentabilidade da Segurança Social?

É uma visão um pouco instrumental. É dito que precisamos de crianças, precisamos de uma população activa para assegurar a sustentabilidade do sistema de Segurança Social, e não é dito que precisamos de crianças, de famílias, precisamos de relações inter-geracionais sustentáveis porque é a base de tudo o que se passa na sociedade. É muito redutor.

Nota-se um percurso com algumas almofadas ao longo do tempo, que não serviu para inverter a tendência de descida da natalidade, mas serviu, pelo menos, até ao início da crise, para dar alguma estabilidade às famílias para manter a fecundidade em patamares que não eram tão baixos. Durante cerca de 10 anos, o Índice Sintético de Fecundidade (ISF) oscilava entre 1,4 e 1,5. Agora com a crise baixa para 1,28. Nunca tivemos uma fecundidade tão baixa. O que significa que a crise e esta despromoção das políticas de famílias tiveram um impacto dramático.

Os dados deixam-nos afirmar que há um impacto imediato da crise na natalidade?

Basta pegar no ISF. Basta pegar no risco de pobreza das crianças. Basta ver a redução no apoio económico às famílias - não às muito pobres, mas sobretudo às pobres e remediadas. Basta, também, ouvir as famílias e as crianças. No ano passado fizemos entrevistas, para tentarmos perceber o impacto disto tudo nas próprias crianças e como é que elas vivem. Houve uma criança que, quando perguntámos "o que é que se poderá fazer para enfrentar a crise?", respondeu: "não sei, mas talvez arranjar uma forma de mostrar mais esperança". Portanto, até as crianças pressentem que, de facto, não há um discurso, uma mensagem de esperança para elas e para as suas famílias.

"Há muitas famílias que estão a desistir da formação suplementar para os filhos"

Claro que o indicador mais visível é a fecundidade. E também as dificuldades que as famílias têm em assegurar uma escolarização mais prolongada. Estávamos também a evoluir favoravelmente, segundo a OCDE, em termos de percentagem de adolescentes que acabam o secundário e vão para a universidade ou que têm uma formação superior. Neste momento, há muitas famílias que estão a desistir dessa formação suplementar para os seus filhos.

A tendência actual é para questionar se há uma compensação do mercado de trabalho pela aposta na educação superior…

Isso é péssimo, porque significa que as próprias famílias estão a desistir de investir na educação dos filhos, no bem-estar dos filhos no futuro. Esse é também um impacto gravíssimo desta ausência de mensagem positiva.

Mas, tendo em conta aquilo que as famílias foram planeando ao longo das últimas décadas e o número de filhos que foram desejando ter, por melhor que seja o pacote de condições criadas pelo Estado, nunca teremos um salto de fecundidade...

Não, nunca vamos passar para um ISF de 2,1 [limite mínimo para assegurar a renovação de gerações], mas alguns países que têm tido políticas de família mais coerentes e mais desenvolvidas têm conseguido aumentar o ISF.

Tem havido estudos para tentar perceber a relação entre as políticas de família e a fecundidade, que mostram que há dois elementos que são essenciais e que promovem a fecundidade: são o bem-estar económico - acesso ao emprego, rendimentos médios e benefícios para responder aos custos directos de uma criança - e a componente dos serviços - equipamentos que permitam às famílias ter os cuidados das crianças assegurados enquanto estão a trabalhar, como creches e pré-escolar a tempo inteiro, acesso a instituições que não sejam muito caras, qualidade dos serviços.

A melhor política de natalidade, neste momento, não passaria por concentrar esforços na criação de condições para que haja mais emprego e para que os empregos sejam mais estáveis - mais do que focarmo-nos em aumentar o abono, por exemplo?

É tudo isso. É preciso que os jovens tenham acesso ao mercado de trabalho, porque são eles que vão ter filhos, é preciso criar almofadas para as famílias mais vulneráveis do ponto de vista económico, é preciso dar apoio às famílias pelo custo económico de ter uma criança. Para promover a natalidade, é preciso uma política de família mais global, que tenha em conta todos estes elementos. E que também tenha em conta as mensagens, a coerência das políticas, a estabilidade das políticas, para as famílias saberem com que medidas podem contar. Políticas que garantam que as famílias não se sintam tão inseguras, que não sintam a incerteza de uma forma tão brutal como estão a sentir agora.

"São as crianças que vão crescer e sofrer as consequências da privação material, cultural e parental"

Crescer em Portugal, nestas circunstâncias... que impacto poderá ter no futuro?

Uma crise também tem lados positivos, não tem apenas negativos. Para sermos mais optimistas, vamos começar pelos lados positivos. Acho que, por exemplo, a necessidade de escolher melhor aquilo que se consome dentro da família, de racionalizar as actividades, pode ter um impacto positivo. As crianças são obrigadas, no contexto familiar, a terem mais consciência dos problemas dos adultos, o que cria uma certa solidariedade entre os pais e os filhos e prepara-os também para as dificuldades que vão encontrar ao longo da vida, na escola, no acesso ao mercado de trabalho.

Outro aspecto que poderá ser positivo: as crianças serem chamadas a ter uma participação cívica mais intensa. Nas escolas, têm contacto hoje com muitas crianças que estão com problemas de alimentação, com carências económicas e as próprias escolas desenvolvem políticas locais e pontuais de apoio a essas crianças. Por vezes, envolvem toda a escola nesse esforço para dar apoio. As crianças gostam de poder participar nesse esforço cívico e isso pode criar uma cultura cívica mais intensa.

Mas o lado negativo está a sobrepor-se...

Claro que, do ponto de vista das crianças que mais sofrem, que estão nessas famílias mais desfavorecidas, que têm poucos meios para enfrentar estas dificuldades, aí o impacto no percurso de vida delas pode ser dramático. Pode pôr em causa o sucesso escolar, o desenvolvimento psíquico e cognitivo. Quando as famílias não têm possibilidade de ajudar as crianças, isso introduz, muitas vezes, conflitos familiares graves. Por exemplo, conflitos à volta do dinheiro, violência familiar.

Sabemos que, nestas situações, ter um adulto desempregado na família, que está com uma auto-estima baixa, que está frustrado, que não pode dar apoio aos filhos, também cria um clima pouco positivo do ponto de vista das relações pais-filhos. Desse ponto de vista, são as crianças que vão crescer e sofrer as consequências da privação material, cultural e parental. São crianças que vão sentir isso mais tarde, em termos de competências para terem sucesso na sua vida, enquanto cidadãos.

"Não acho que se possa culpabilizar as famílias por viverem acima dos seus rendimentos"

O resultado será uma geração mais insegura, menos ambiciosa?

É uma geração menos confiante nas instituições, no Governo, no seu próprio país e portanto é uma geração que vai procurar também outro tipo de soluções - eventualmente sair do país. Mesmo as crianças mais novas, com oito, nove, 10 anos já contemplam essa possibilidade. São crianças que não vêem como provável um investimento no seu próprio país e, possivelmente, isso também vai afectar a sua própria criatividade, em termos emocionais e profissionais. E nós precisamos de toda essa criatividade, desse investimento.

As famílias foram acusadas nestes últimos anos de terem vivido acima das suas possibilidades. O que é que os números lhe dizem a esse respeito?

Os rendimentos das famílias em Portugal são rendimentos médios e temos uma enorme proporção de famílias que tem rendimentos muito modestos. Por outro lado, a desigualdade entre famílias, entre as mais ricas e as mais pobres, é natural que esteja a aumentar, devido a esta falta de um pacote de condições que o Estado estava a dar.

Muitas dessas famílias endividaram-se para adquirir casa própria. Muitas vezes diz-se que as famílias em Portugal são todas proprietárias, o que não é muito comum na Alemanha ou na Suíça. Mas temos de ver que os salários em Portugal são extremamente baixos e o acesso a uma casa própria, ao longo das últimas duas ou três décadas, foi uma maneira de garantir condições de sobrevivência e materiais mínimas para as famílias portuguesas. Foi um elemento de democratização da vida familiar. Pediram empréstimos? Claro. Beneficiaram, tal como os Estados, porque os juros eram baixos e, portanto, fazia sentido.

A maioria das famílias tem um nível de vida que não é, de todo, luxuoso. Claro que temos uma franja de famílias, as 20% mais ricas, que têm um nível de vida muito acima da média, mas também não são essas que estão a ser mais afectadas pela crise. Não acho que, em geral, se possa culpabilizar as famílias por viverem acima dos seus rendimentos.

Não foram anos de ilusão?

Para as famílias, não. Para as famílias foram anos de melhoria das condições de vida, de melhoria da possibilidade de investir na educação e no bem-estar dos filhos - coisa que durante muitas décadas não foi possível. Até 1980 não foi possível. E a evolução do nível de vida foi, em termos comparativos com outros países europeus, modesta. Hoje estão a desinvestir em relação às gerações futuras.

"O que se passou nos últimos anos foi tão grave que vai, sem dúvida, afectar as crianças que neste momento estão a crescer nestas famílias"

O programa de assistência financeira deverá acabar entretanto. Durante quanto tempo terão efeito as réplicas deste abalo sentido pelas famílias portuguesas? Vamos ainda a tempo de reverter o que se agravou nestes três anos?

Eu acho que, neste momento, era possível, desde já, ter uma política de família diferente, que desse mais confiança às famílias e que desse mais apoio. Para que não questionassem permanentemente a importância da vida familiar e do bem-estar das crianças. Mesmo sem aumentar muito, neste momento, o apoio económico, podiam-se criar condições para dar mais confiança e esperança às famílias. Fala-se em várias medidas, mas não podem ser medidas soltas. Agora, eu acho que o que se passou nos últimos anos foi tão grave que vai, sem dúvida, afectar as crianças que neste momento estão a crescer nestas famílias.

A imigração em Portugal, no início deste século, também ajudou a manter a fecundidade. Acolhemos jovens casais que tiveram cá as suas crianças, procurámos integrá-los, e neste momento não estamos a fazer apelo a essa imigração potencial. E, pelo contrário, vamos nós ter famílias que estão separadas e eventualmente, também, mais crianças que saem do país e que acabam por ser educadas lá fora. E que muito provavelmente não regressam.