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Abaixo da linha de água

Rosa Pereira sempre viveu numa casa de habitação social, na Bela Vista, em Lisboa. Mudou-se recentemente para outra maior, no mesmo bairro, que a Câmara lhe atribuiu por ter três netos ao seu cuidado, mas entretanto o mesmo tecto já passou a abrigar seis netos e uma filha.

Abrigados na casa da avó

Lá fora, Lisboa agita-se numa mistura de chuva e vento que torna os guarda-chuvas imprestáveis. Do lado de cá das janelas com grades do rés-do-chão onde vive, Rosa conta-nos que os seus dias começam muito cedo e que não sabe estar parada.

A primeira tarefa é na sede de um banco, onde faz limpezas. "Saio de casa às 5h, entro às 6h, saio às 8h30". Recebe 184 euros por mês. A esse rendimento soma "tudo o que aparece". Nas últimas semanas tem passado a ferro três vezes por semana, em Sacavém, e traz para casa mais seis euros por cada hora de trabalho. "Quando a minha encarregada diz para ir fazer uns extras, como lavar garagens, também vou".

Uma vez por outra vai à Assistência Médica Internacional (AMI) buscar alimentos e outros bens de primeira necessidade para as crianças. Mas onde passa grande parte do tempo é a percorrer os contentores das redondezas à procura do que já não serve aos outros.

Tem a casa toda apetrechada de móveis, brinquedos, electrodomésticos, aparelhagens de som, cobertores e objectos decorativos que encontrou no lixo e recuperou. Exibe-os com orgulho quando nos faz uma visita guiada pelo pequeno T4 onde mora.

Quando começámos a percorrer o estreito corredor que liga os quartos e a cozinha, já a cadela Kika cessou o ladrar agudo com que nos brindou mal entramos em casa. Rúben e Anabela, de quatro e três anos, nunca nos viram mas recebem-nos com abraços nas pernas e pedidos de beijos. Estão os dois com uma conjuntivite que lhes deixou um olho inchado, mas não são visíveis sinais de abatimento.

Seguem-nos para todo o lado, enquanto a avó nos mostra como remendou com fita-cola os candeeiros que encontrou, como deu nova vida a um exaustor resgatado da rua e a um microondas depositado num ecoponto para electrodomésticos supostamente avariados, como readaptou os quartos quando todos foram viver lá para casa.

"O que vê aqui é tudo encontrado no lixo"

Todas as contas são pagas com os 184 euros do ordenado de Rosa, o Rendimento Social de Inserção (RSI) de cerca de 300 euros que a filha Cláudia recebe e um abono de família de "pouco mais de 200 euros". Perto de 700 euros para duas adultas e seis crianças, o que os coloca abaixo do limiar de pobreza, definido em 409 euros mensais por adulto.

O círculo vicioso do desemprego

Cláudia tem 33 anos e está desempregada há quatro. No último emprego que teve, ganhava 500 euros como ajudante de motorista e pagava uma renda de 300 euros de casa. Tinha dois filhos, hoje com 15 e 10 anos, que já moravam com a avó. Eram de uma relação anterior, que acabou porque "ele meteu-se no jogo". Quando ficou grávida de Rúben, foi despedida. Depois veio Anabela, pouco depois o quinto filho, Vítor, e nunca mais conseguiu emprego.

O namorado e pai das três crianças mais novas visita-os, mas não vive com eles. "A minha mãe não quer um homem cá em casa", explica. Está desempregado e não ajuda nas despesas. Se um dia tiver uma casa sua, talvez a situação mude e passem a ter uma vida de família mais convencional.

Um mundo à parte da "troika"

Rosa foi casada duas vezes e duas vezes se divorciou. Um dos ex-maridos está no Luxemburgo, o outro "bebia muito". Cuidou sozinha das duas filhas e há vários anos ficou com a guarda da neta Catarina, hoje com 15 anos, porque a mãe era toxicodependente.

A dada altura alguém toca à campainha. Quando abrem a porta, já só encontram um saco com pães, pendurando. "Deve ser a vizinha da frente, que costuma trazer-nos coisas. Temos muita gente que nos ajuda, é o que nos vale".

A chegada da "troika" agravou os problemas? Acreditam que a situação vai melhorar quando Portugal terminar o programa de ajustamento? Reagem às perguntas como se alguém tivesse começado a falar outra língua. Uma dessas que Ricardo, o filho mais velho de Cláudia, espera aprender quando sair do país para trabalhar e "conhecer muitas cidades". Já tem o plano traçado: vai ter com o avô ao Luxemburgo e faz lá o ensino secundário. Depois, tudo é possível.

A prima Catarina, também com 15 anos e sentada ao seu lado no sofá, torce o nariz à hipótese de sair de Lisboa e começa a gozar com os "devaneios" do primo. Ricardo não se deixa envergonhar e até elabora mais o sonho: imagina-se cozinheiro e gostava de começar por Paris, onde, naturalmente, espera encontrar uma namorada.

"O meu sonho era ir para o estrangeiro"

Cláudia confessa que não liga nada às notícias sobre a "troika" ou a reestruturação da dívida pública, mas teme pelo futuro dos filhos. Não só do Ricardo, que não tardará muito a entrar no mercado de trabalho, mas também dos mais pequenos.

O assunto ocupa-lhe a cabeça mais do que gostaria, mas sabe que tem de se focar nos problemas imediatos. Como uma dívida ao banco que vai adiando enfrentar. É muito? Cláudia engole em seco e fica séria. "É. Mais de três mil euros". Há uns anos, o banco enviou-lhe um cartão de crédito que nunca pediu. "Eu disse-lhes que estava desempregada, mas eles responderam que não me preocupasse, que depois ia pagando quando pudesse".

Estava ali, era só activar e usar. E quando o dinheiro faltou para comida, usou mesmo. Foi mantendo os filhos com aquela alternativa que tinha caído na caixa do correio, até somar a quantia que agora deve. Explicou a sua situação à advogada do banco e tem conseguido adiar o pagamento, mas não sabe até quando. "Estou a deixar isto andar. Se eles quiserem que eu vá fazer trabalhos comunitários, eu vou, para pagar a dívida. Paciência. Mas não vou tirar da boca dos meus filhos para dar a eles. Isso não".

Não tentou chegar a um acordo ou pedir outras condições de pagamento, porque, para tudo isso, "tem de se pagar". "Como é que eu vou pagar a um advogado? Para essas coisas, não tenho. Para pedir à Segurança Social, demora muito tempo… Não vale a pena. Também já pensei ir à Deco, mas a gente também tem de pagar. Estou a deixar isto andar".

Cláudia acorda sobressaltada várias vezes por causa desses três mil euros. Não muito longe dali, o sono de uma família de Cascais deixou de ser tranquilo quando a dívida chegou aos 250 mil euros.