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"Crédito nunca mais"

"Já passei por muita coisa", assegura-nos um homem de 50 anos e expressão sorridente. Diz isto depois de relatar alguns problemas de saúde que superou, sobretudo uma pneumonia que o atirou para uma cama de hospital "há uma data de anos" e que o deixou quase sem oxigénio no sangue.

Segundo o prognóstico do médico, "devia estar caído redondo no meio do chão" e demorar um mês a recuperar. Quinze dias depois estava em casa.

"Você tem uma capacidade de recuperação que eu nunca vi", diagnosticou então o médico. Manuel achou antes que se devia a "uma sorte incrível", mas a verdade é que não é à sorte que confia o destino.

Na sala de uma casa acolhedora algures no concelho de Cascais, sentado no sofá de couro onde se passeiam duas gatas pretas, esse homem - que prefere não se identificar e que trataremos por Manuel - conta-nos que trabalhou 25 anos num banco, até que lhe propuseram a pré-reforma com uma pensão correspondente a 80% do salário.

Eram 900 euros por mês até à idade da reforma oficial, com possibilidade de se lançar noutras aventuras profissionais. Pouco tempo depois, voltou a trabalhar para o banco como promotor, mantendo a pensão que já estava a receber. Tinha "bons rendimentos mensais" e, como estava livre do "trabalho com horários", decidiu lançar-se em negócios próprios na área da restauração.

Não correu bem. Em 2010, a conjuntura mudou e, "durante dois anos e tal", as contas foram descarrilando cada vez mais. "Para não assumir dívidas com os fornecedores, assumi dívidas com empresas de crédito. A certa altura, com as crises que começou a haver, as comissões muito boas que eu tinha como promotor bancário deixaram de existir e comecei a não conseguir fazer face às situações".

A bola de neve

Manuel está casado há 20 anos com Sara (nome também fictício), que acaba de chegar a casa. Sugere que continuemos a conversa só com o marido, que ela tem de ir preparar o jantar. É funcionária judicial e tinha ficado a fazer horas extras no tribunal - "funcionário público não é como pensam", atira - e já tinha tudo atrasado. Assegura que "a história é a mesma, diríamos os dois a mesma coisa", e segue para a cozinha.

Com o som da água a encher os tachos na divisão ao lado, Manuel prossegue. Conta que, quando a bola da dívida foi rolando encosta abaixo e crescendo a cada dia, tentou arranjar outros trabalhos, mas as empresas também "não eram flexíveis aos pagamentos" que pretendia fazer.

A avalanche atingiu o pico em 2012: os contratos de crédito em incumprimento tinham chegado aos 100 mil euros. Somando ao que ainda deviam do empréstimo da casa, Manuel e Sara tinham à frente um buraco de 250 mil euros. Só havia uma saída: declarar insolvência e tentar reestruturar a dívida.

"Tínhamos de tomar uma decisão"

Pedidos de insolvência das famílias ultrapassam os das empresas desde 2011

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Encontraram ajuda no Centro de Apoio ao Endividado. Levaram o caso a tribunal e, em Novembro de 2013, os credores de Manuel e Sara foram obrigados a aceitar o plano desenhado. Têm 11 anos pela frente para pagar a fatia maior da dívida e depois mais oito para acabar de pagar o empréstimo da casa, no ritmo contratualizado há 20 anos.

Dos cerca de dois mil euros de rendimentos fixos que têm por mês - a reforma de Manuel e o salário de Sara - perdem automaticamente cerca de 1100 para os credores. Sobram cerca de "800 a 900" para as despesas básicas da família.

"Crédito nunca mais"

O plano "está estruturado de modo a que a gente consiga sobreviver", acredita Manuel. Sabe que "luxos não haverá" e que não voltarão, provavelmente, "a ter a vida" de outros tempos, mas a forma como encaram o futuro também já foi recalibrada.


Danos colaterais

Podiam ter optado por resolver o problema em cinco anos, o que os obrigaria a perder tudo o que têm e, nesse período de tempo, canalizar todos os rendimentos para pagar o que deviam. No fim dos cinco anos, o que restasse de dívida ficaria liquidado automaticamente - e os credores perderiam o direito ao que estivesse em falta. "Nós não quisemos entrar por esse caminho, até porque queríamos manter os nossos bens, mas também não queríamos ficar a dever nada a ninguém".

Na decisão pesou também o facto de não quererem "ficar cinco anos de mãos atadas" e hipotecar ainda mais a vida do filho de 17 anos. João - chamemos-lhe assim - "estava desde a pré-primária num colégio particular, aqui em Cascais" e teve de se mudar para a escola pública. O resultado imediato "foi um certo choque, um certo deslumbramento da liberdade cá fora", o que "teve consequências": reprovou dois anos.

Enquanto conversamos, João está a uns metros da sala, fechado em frente ao computador, a tentar recuperar o tempo perdido. "Está agora a acabar os exames" para tentar completar 7º, 8º e 9º ano de uma só vez.

Manuel sabe que o filho "sentiu também a falta daquelas coisas que os miúdos querem hoje em dia: as tecnologias mais avançadas, os jogos, uma certa roupa". Tiveram que lhe dizer "pá, amigo, a vida custa a todos, a vida não está boa".

"Ele compreende perfeitamente", acredita o pai. Está a crescer rápido e tem planos de vida que o obrigam a ganhar responsabilidade. "Ele quer enveredar por algum ramo da produção musical, da sonoplastia" e, se tudo correr bem, depois de acabar o 12º ano fará a sua formação nos Estados Unidos.

O pai não duvida que "é lá que é bom para aprender aquilo que ele quer". Têm lá família e o alojamento estará assegurado. "Temos de começar já a preparar isso, que não é barato".

Do crédito oferecido à intransigência total

Entretanto, Manuel conseguiu aliviar mais um pouco as contas em casa com um novo emprego numa empresa de retalho que gere três supermercados em Cascais. Ultrapassado o período mais difícil, já se permite ver o futuro "com optimismo". Mas há um mérito de que não abdica: "O optimismo fui eu que criei. Criei a possibilidade de ter esse optimismo, através da ajuda que tive também."

Sobretudo quando os que antes lhe ofereciam crédito de bandeja deixaram de ter qualquer flexibilidade para que a dívida fosse paga na medida do possível.

Voltar a respirar

Sara ainda está na cozinha. Enquanto acaba de preparar um strogonoff de frango com arroz branco, rebobina 20 anos para recordar que, no início da vida de casada, tinham ambos "empregos estáveis, um futuro sorridente e nada levaria a pensar que aconteceria isto".

Agora que "parou o sufoco dos juros e de querer pagar e não conseguir", já consegue sentar-se a jantar descansada e o sabor da comida voltou a depender exclusivamente dos seus dotes culinários - elogiados pelo marido.

"Peçam ajuda"

Sara tem vontade de dizer a todas as famílias com dívidas em incumprimento para pedirem ajuda. Manuel também tem conselhos, mas para o Governo português. Identifica grandes semelhanças entre a postura do país perante a "troika" e a que que os seus credores lhe tentaram impor. E que o teria estrangulado financeiramente.

"Aliviar a carga aos portugueses"

Último recurso: adeus, país

O optimismo que esta família de Cascais reconquistou dentro de casa não se mantém quando olham para o país. "Não enquanto se mantiver cá o mesmo ciclo vicioso de políticos que temos desde 1974", explica Manuel, que esteve ligado à JSD desde os tempos de escola e que se afastou há muitos anos, quando percebeu "o que era a política". Não vai a manifestações, porque não acredita "nisso", mas aproveita "uma ou outra reunião" do partido, a que de vez em quando ainda comparece, para "disparatar".

Um desencantamento que, somado aos cortes "na ordem dos 300 euros mensais" que Sara tem sofrido nos últimos anos, já os fez pensar seriamente em fazer as malas. "Com a desilusão que ela está a ter hoje em dia, como funcionária pública", o marido viu a hipótese ganhar força.

"É uma pessoa que se dedica, que tem que ter um conhecimento técnico vasto. E, de repente ao longo destes anos todos, com a carreira congelada, promoções congeladas, ainda lhe começam a retirar do ordenado", lamenta Manuel.

De cada vez que vêem "reportagens sobre as vidas em Angola e Moçambique", a ideia impõe-se nas conversas familiares. Sara não consegue ganhar ânimo quando vê "a classe média completamente asfixiada, sem escapatória possível". Manuel promete "pensar no assunto".