Terra de acolhimento
Não é fácil reconhecer o edifício da Via Ungaretti, nos limites da cidade de Ragusa, no sul da Sicília. Visto de fora, não há muito que o distinga das outras habitações do bairro. São duas simples casas amarelas, com brinquedos espalhados pelo jardim e roupa de criança a secar no estendal. Não há polícia à vista, nem sequer um segurança. Os 60 quilómetros de estrada entre a Fundação San Giovanni Battista e o CARA de Mineo não fazem justiça à distância simbólica que os separa.
Momodou é um dos 18 mil migrantes que conseguiu lugar no Sistema de Protecção para Requerentes de Asilo e Refugiados (SPRAR) - a última linha do acolhimento em Itália. Depois de passar por outros dois centros, vive agora na casa do projecto “Família Amiga”, da Cáritas Diocesana de Ragusa.
A Fundação San Giovanni Battista, que gere o espaço, lida com requerentes e titulares de protecção internacional desde 2001. Neste SPRAR acolhe 23 pessoas, incluindo cinco famílias.
Momodou, o rapaz de sorriso fácil e palavras curtas, fugiu da Gâmbia em 2013, depois do sítio onde trabalhava com o pai ter sido assaltado. “O meu pai não confiava em mim e disse que eu é que tinha planeado tudo para nos assaltarem e levarem o dinheiro”. É a frase mais comprida que Momodou partilha. A sua história sai-lhe com custo.
Conta que a polícia o prendeu, que lhe bateu e que não o alimentou durante alguns dias, até a irmã lhe pagar a fiança e o ajudar a fugir. Demorou dois meses a chegar à Líbia, não suportou o medo que se respira no país e voltou a pedir ajuda à irmã. Arranjou os 74 mil dalasis gambianos (cerca de 1.500 euros) de que precisava para comprar aos contrabandistas líbios um lugar num barco.
“Agora estou salvo”, pensou Momodou quando se viu a bordo de um navio da Marinha italiana, há um ano. Desde então aguarda uma resposta ao pedido de asilo, que acredita que vai chegar “talvez em dois ou três meses”. Se for positiva, o SPRAR vai ajudá-lo na fase de procura de emprego e de casa.
O tempo de permanência num sítio como este deveria ser de seis meses, mas acaba quase sempre por ser esticado até um ano. Nesse período, a fundação organiza workshops e formações em várias áreas, em parceria com agências especializadas. Cada caso é acompanhado individualmente.
Há, naturalmente, percursos muito diferentes. Se há migrantes que “têm diplomas ou um nível de escolarização muito elevado”, outros chegam com claras dificuldades de aprendizagem. A assistente social do centro nota que “há sobretudo muitas mulheres completamente analfabetas, que têm dificuldade em lidar com a língua italiana num verdadeiro modelo escolar”.
O projecto “Família Amiga” é um dos cinco geridos pela Fundação San Giovanni Battista na província de Ragusa.
O financiamento, explica Gina Massari, “vem do MAI, com uma parte de co-financiamento da entidade local e da entidade gestora” - que “pode ser em pessoal, pode ser com a estrutura, com meios ou mesmo com liquidez”.
Até 2017, o Governo italiano quer aumentar a capacidade da rede SPRAR de 18 mil para 20 mil lugares. “É preciso cumprir determinados requisitos, é preciso ter experiência… Até porque o outro lado da imigração é que faz circular muito dinheiro e muitos podem jogar, entre aspas, com um sector que não conhecem”. Por isso, assegura Gina, “os centros SPRAR são sujeitos a uma monitorização, a um controlo periódico da parte do Ministério”.
CONTRA A INDIFERENÇA GLOBAL
A assistente social Gina Massari é uma das quatro pessoas que trabalha a tempo inteiro no projecto “Família Amiga”. Com mais de dez anos de experiência na área, testemunhou como os sicilianos “têm sido muito acolhedores, abriram as casas, deram trabalho e a convivência funcionou”.
Nos últimos tempos, contudo, Gina viu a atitude para com os migrantes mudar nalguns conterrâneos. “Em parte porque os números aumentaram muito, em parte porque a crise económica, mas também a crise social, afectou todos. Afectou também a Sicília e a nossa província. Por isso há muita desconfiança, muito medo e às vezes há quase uma batalha interna entre os desesperados.”
Apesar de ser presença assídua no SPRAR, é no centro da cidade de Ragusa, na sede da Cáritas Diocesana, que Domenico Leggio gere os outros projectos que “todos os dias são dedicados em 70 a 80% à população local”. Um argumento de que se vale para demover os que “vêem os migrantes como alguém que lhes tira alguma coisa”.
“Isto não é verdade. A receita produzida pelos migrantes que trabalham no nosso país, até para garantir o nosso sistema providencial, é maior que os custos que o Governo italiano tem com o acolhimento dos que chegam”, assegura. E defende que mesmo esses poderiam e deveriam ser reduzidos.
Na Sicília, qualquer conversa sobre imigração começa invariavelmente com uma espécie de slogan que informa que “estamos numa terra de acolhimento”. Domenico Leggio quer mostrar que é mais do que uma frase feita. “As pessoas, quando se cruzam com um imigrante que conta o que lhe sucedeu, que para chegar à nossa costa demorou dois anos, superando a travessia do deserto, as prisões líbias e até a viagem pelo Mediterrâneo, não o vêem como uma ameaça”.
O que falta, defende, é mais informação. “Nós estamos empenhados em fazer essa sensibilização, de modo a que esta indiferença global, como foi definida pelo Papa Francisco, possa ser ultrapassada a partir do nosso território”.
O que implica que se encare o fenómeno da imigração como algo estrutural. “Não faz parte de uma emergência, não é apenas a operação Mare Nostrum, não é apenas um ministro ou um governo que priveligia isto, mas sim a evolução da história, da geografia”, sustenta. “Este povo tem de fugir dali, tem de seguir outro caminho e isto ninguém pode parar. Vêm e continuarão a vir, pedindo acolhimento”.