Milhares de pessoas atravessam todos os dias o Mediterrâneo a caminho da Europa. É à Sicília que chega a maioria dos migrantes que sobrevivem à travessia do mar. Nesta história há um continente que se move e uma Europa ainda à procura da melhor forma de lidar com o fenómeno.
Por Catarina Santos, na Sicília
Empurrado para a Europa
A noite vai alta e uma enorme massa preta funde o céu e o mar. À volta, o rugir de uma imensidão de água. O movimento constante do barco não permite focar os olhares que se cruzam no escuro, mas o medo é palpável como a borracha do barco que os separa do Mediterrâneo.
Nas primeiras horas daquela segunda-feira, algures no Outono de 2013, Samu tem mais de 90 pessoas à volta mas está sozinho. Durante os dois dias e duas noites que se seguem, ouve aquele som difuso de água e de gente a chorar, mas a sua cabeça não está ali. Tinha ficado presa às margens líbias.
Samu mede quase dois metros e tem uma estatura atlética. Joga futebol e é um espectador atento das equipas portuguesas - pergunta imediatamente pelo “FC Porto”. Os olhos e a voz denunciam um homem com uma história mais pesada que os seus 29 anos.
Quando saiu do Gana, em 2008, não imaginava que a viagem o levaria ao sul de Itália, algures no coração da ilha da Sicília. Fugiu do seu país “por causa de um problema pessoal” que diz que não pode contar e fez mais de 2.800 quilómetros até à Líbia. Passou lá cinco anos a trabalhar nas obras e foi assistindo a um agravamento da situação no país e a um consequente crescimento do perigo para quem tivesse a sua cor de pele.
Agora, "a Líbia é o sítio mais perigoso” que alguma vez conheceu. Os negros são o alvo preferencial para apontar a imensidão de armas envergadas por “pequenos rapazes e pessoas que não deveriam ter estas coisas nas mãos”.
Antes da revolução que virou o país do avesso em 2011 e que culminou na queda de Muammar Khadafi, Samu “dificilmente via um líbio pegar numa arma, porque eles tinham medo”. Depois do caos instalado, “muita coisa mudou”. “Podem disparar contra nós. Podemos estar a caminhar, sem fazer nada, e sermos espancados e vítimas de todo o tipo de tratamento. Se eu tirasse as minhas roupas, veria uma marca aqui nas minhas costas, feita com uma faca. Compreende?"
Samu repete a pergunta no fim de cada frase. “Compreende?” Como quem sabe que o que está a contar é de difícil apreensão para a bagagem de vida comum de um europeu.
Em meados de 2013, “não havia comida, não se podia sair à rua… E, no entanto, também não podia voltar à minha terra, porque tinha problemas lá”.
Samu foi-se deixando ficar enquanto tinha emprego. Quando se deu “o segundo momento mais triste” da sua vida, o episódio que o fez fugir de novo, ainda trabalhava nas obras, numa casa em El Agheila, uma pequena cidade na costa líbia, virada para o Mediterrâneo, a 650 quilómetros de Trípoli.
Nunca chegaram ao supermercado. Samu conseguiu fugir e pedir ajuda ao “mudir”, o patrão da obra na qual estava a trabalhar. O amigo estava morto por causa de uns trocos.
Passaram uns dias. “Já tínhamos quase terminado o trabalho naquela casa em El Agheila e aqueles rapazes foram lá à minha procura”. Samu estava aterrorizado. Nessa mesma noite, o “mudir” meteu-o num carro e levou-o para “um lugar onde havia muitas pessoas”. Trocou umas palavras que Samu não compreendeu “com umas pessoas que estavam armadas” e que o mandaram sentar junto dos outros.
“Pensei que me iam matar e estava com medo. O ‘mudir’ disse-me para ficar ali, que ele regressaria. Não sabia de nada. Duas ou três horas depois disseram que tínhamos todos de ir. Era perto do mar. Estava lá um barco e pediram a toda a gente para entrar. Não podia recusar, porque estava com muito, muito medo."
Samu não sabe se o patrão pagou para que ele tivesse um lugar naquele “barco de borracha”. Passou dois dias no mar sem saber bem para onde ia e acabou por ser salvo “por um barco muito grande”.
“Deram-nos o pequeno-almoço, água e um sítio para nos lavarmos. Como estávamos muito cansados, puseram-nos num sítio para dormir. Eu não consegui, porque ainda estava a pensar no que tinha acontecido antes de aqui chegar. Estava a pensar na minha vida e no meu amigo, que foi atingido e morto por aqueles rapazes”.
Um dia depois estava a desembarcar na Sicília. Foi directamente para o Centro de Acolhimento para Requerentes de Asilo (CARA) de Mineo, onde está há quase um ano. Nunca tinha planeado vir para a Europa.
Samu aponta para a professora de italiano, parada à porta da sala onde conversamos, a fitá-lo com olhos de pressa. A entrevista já lhe roubou mais de meia hora de aula e cada minuto a aprender essa língua “difícil” é mais um passo em direcção a uma nova vida.
A prioridade, agora, é ser aceite como refugiado. “Depois de ter os documentos, posso continuar a estudar, posso fazer muitas coisas”. Pode até retomar os planos que tinha quando acabou o ensino secundário, no Gana, para se tornar “um economista muito bom”.
Seis anos depois de a vida lhe ter trocado as voltas, Samu voltou a sonhar.