Enfrentar o mar da morte
Samu está entre os mais de 100 mil migrantes salvos pela Mare Nostrum. A operação começou em Outubro de 2013, na sequência de um naufrágio ao largo da ilha italiana de Lampedusa que tirou a vida a 366 migrantes.
Não era primeira vez que tantas mortes ocorriam no Mediterrâneo e não seria a última. Mas foi a primeira vez que os corpos ficaram ao alcance das câmaras de televisão. As imagens espalharam-se, invadiram as salas de estar de todo o mundo e a tragédia motivou o Governo italiano a lançar uma operação de busca e salvamento, coordenada pela Marinha, pela Direcção Central de Imigração e pela polícia de fronteira.
O foco, que até então tinha estado centrado na protecção da fronteira (enquanto Silvio Berlusconi estava à frente do Governo italiano, a prática mais comum era “devolver” os migrantes à Líbia, onde eram frequentemente detidos pelas forças de Muammar Khadafi), era ajustado a um objectivo repetido até à exaustão neste último ano: “salvar vidas”.
Muitos mais sobrevivem desde o início da operação, mas o número dos que não resistem à travessia também aumentou. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), desde Janeiro deste ano mais de três mil pessoas terão perdido a vida naquele que muitos chamam o “mar da morte”. É mais do dobro do pico verificado em 2011 e mais do quádruplo dos 700 mortos registados no ano passado.
O Mediterrâneo central tornou-se a rota mais procurada para chegar à Europa depois da Primavera Árabe (foi usada por 60 mil pessoas em 2011), mas o fenómeno está a bater todos os recordes este ano. Até meio de Setembro, mais de 130 mil migrantes atravessaram as fronteiras do sul da Europa. Desses, mais de 118 mil entraram por Itália, estima o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
Entre eles está um número crescente de crianças. A organização Save the Children assegura que, entre Janeiro e Outubro, chegaram mais de 20 mil menores e que mais de 11 mil não estavam acompanhados por qualquer adulto. Alguns perderam os pais na viagem, mas a maioria já partiu sozinha.
É uma enorme massa humana que foge da instabilidade na Líbia e da guerra na Síria, da tensão entre Israel e Palestina, das perseguições ou da fome na Nigéria, no Gana, na Gâmbia, no Mali, na Eritreia, na Somália. “É quase um continente que se move”, dir-nos-á um director de um centro de acolhimento de migrantes.
“Tal como com a crise económica, nós não nos apercebemos imediatamente do que se passava”, diz Berardino Amodio. “É passado alguns meses que vem o pior” e o tenente não sabe se esse pico já foi atingido. “Julgo que com o Inverno as viagens vão diminuir, mas o certo é que estas pessoas estão a fugir dos seus países, das guerras. Todos esses refugiados estão à espera, na costa do Norte de África, para fugir”.
O navio Orione não passa muito tempo atracado no porto de Augusta, na zona oriental da Sicília, onde o encontrámos. Desde o início de Setembro deste ano, tem aos comandos o tenente Amodio.
Outros navios semelhantes integram a Mare Nostrum, juntamente com “algumas fragatas, um LPD [porta-helicópteros] e vários helicópteros e aviões que verificam, rastreiam e patrulham esta área”, combinando forças da Marinha, Guarda Costeira, Força Aérea, diversas forças policiais, o Ministério da Saúde italiano e os serviços de imigração.
Numa operação que custa cerca de nove milhões de euros por mês aos cofres italianos, vigiam uma área de 43 mil quilómetros quadrados. Assim que os satélites do posto de comando (localizado em Poggio Renatico, no norte de Itália) detectam uma embarcação não identificada, os meios posicionados na zona são alertados e começam imediatamente a procurá-la.
Um ritual que pode repetir-se várias vezes no mesmo dia. Aquele molho de gente distribuída no convés “fica no mar um ou dois dias, no máximo”, assegura Amodio. É o tempo médio da viagem para terra e da chegada das instruções do Ministério da Administração Interna (MAI) sobre o porto de destino. A maioria dos desembarques ocorre na costa da Sicília.
DE OLHO NOS CONTRABANDISTAS
Nalgumas viagens, entre a esmagadora maioria que fica mais aliviada a cada milha que o navio avança, há quem não alimente as mesmas ânsias de chegar à Europa. Sobretudo se a operação da Marinha tiver sido bem sucedida no seu outro objectivo: identificar os contrabandistas.
O relatório de Agosto do MAI italiano sobre migrações contabiliza 453 traficantes presos desde o início da Mare Nostrum. A maioria tem nacionalidade tunisina ou egípcia e cerca de 25 anos.
O tipo de embarcação é um indicador de onde partiram. Os barcos pneumáticos denunciam uma partida da zona de Trípoli e são conduzidos por um dos migrantes - normalmente, alguém com noções de navegação, que assim não tem de pagar a viagem. Os barcos de madeira partem, sobretudo, de Zuwarah, a 100 km de Trípoli, e são geralmente conduzidos por marinheiros profissionais, muitos deles tunisinos.
A Organização Internacional para as Migrações estima que haja números incontáveis de mortes às mãos dos traficantes - por assassinato directo, maus tratos, tortura ou abandono, entre outras razões. Estas mortes raramente são reportadas e não figuram nas estatísticas.
Um relatório do Conselho da Europa de Junho deste ano diz que as organizações criminosas cobram até 4.000 euros por um lugar num barco, num negócio que gera mais de 80 milhões de euros por ano.
“Desde o primeiro momento estamos a tentar apanhar a pessoa que está ao comando”, clarifica o comandante do Orione. “Até agora, já entregámos à polícia cerca de 300 contrabandistas”, que enfrentam cinco a 15 anos de prisão se ficar provado que promoveram a imigração ilegal.
Não é tarefa fácil identificar os membros destas organizações criminosas. Os migrantes não os denunciam com medo de represálias e Berardino Amodio diz que os traficantes “estão a ficar mais espertos”. Por vezes, “as pessoas a bordo da embarcação substituem a pessoa que está aos comandos” e, quando a Marinha se aproxima, “há dez ou 15 pessoas a conduzir o barco e aí é praticamente impossível identificar o traficante”.
Aparentemente, tiveram menos habilidade três homens escoltados pela polícia em Porto Empedocle, no sudoeste da Sicília, à chegada do navio de patrulha Libra, em finais de Setembro. Foram identificados como possíveis traficantes entre 345 migrantes salvos no Canal da Sicília, vindos da Síria, Palestina, Bangladesh, Sudão, Nigéria.
Mais um dia normal na costa sudoeste da Sicília. Desde Janeiro, 45 desembarques antecederam o do navio Libra. Mais de 12 mil pessoas puseram ali o primeiro pé em solo europeu.
Sete autocarros transportam depois as três centenas e meia de pessoas para uma espécie de armazém à entrada do porto. Nas quatro horas seguintes, os migrantes são passados a pente fino pela polícia, fazem exames de saúde mais rigorosos e têm o primeiro contacto com operacionais do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), da Organização Internacional para as Migrações (OIM) ou da organização humanitária Save The Children, que lhes explicam o processo que têm pela frente. É já de noite quando seguem para vários centros de acolhimento, espalhados pela ilha italiana.
Para a maioria, é só mais uma etapa da longa viagem rumo ao norte da Europa - dos 85 mil migrantes que chegaram aos portos italianos até 20 de Julho só 25 mil pediram asilo em Itália. Para os que querem ficar no país, é o início de uma longa espera.