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A longa espera

Os 25.710 quilómetros quadrados da principal ilha do mar Mediterrâneo fazem-se em constante sobe e desce. O terreno é montanhoso, o clima denuncia a proximidade do continente africano e o fim do Verão cobre a Sicília de uma manta castanha ornamentada com bordados verdes.

Os campos à volta de Mineo, algures no meio do nada, a 60 quilómetros de Catânia, preenchem uma parte desses apontamentos de solo fértil, carregado de laranjeiras. Há também oliveiras, amendoeiras, cactos, rebanhos de ovelhas e muitos homens a pé, em passo lento, para lá e para cá. Olham profundamente nos olhos de cada condutor que se cruza no caminho, nas redondezas do maior Centro de Acolhimento de Requerentes de Asilo da Europa - o CARA de Mineo.

Livres para circular mas sujeitos a recolher obrigatório, vão amolecendo no lento fluir dos dias sem nada para fazer.

O pedido de Peter repete-se como um eco dentro dos 25 hectares do centro, onde vivem cerca de quatro mil migrantes, de mais de 400 etnias diferentes, provenientes de 40 países. Muitos estão à espera das respostas aos pedidos de asilo há mais de um ano.

A demora nas respostas aos pedidos de protecção internacional, que se verifica em Itália, contraria as instruções da directiva europeia em vigor referente aos procedimentos de concessão de asilo em que se lê que a resposta ao pedido deve ser dada em seis meses. Quando tal não é possível, o requerente deve receber informação sobre o tempo previsto para a decisão.

Fonte: Directiva 2005/85/EC de 01/12/2005


De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, estes atrasos são um resultado directo de problemas estruturais no sistema de acolhimento italiano, incluindo falta de capacidade, procedimentos administrativos lentos e atrasos no registo dos pedidos de asilo.

Fonte: Relatório de 2013 do Gabinete Europeu de Apoio em Matéria de Asilo

No centro, distribuem-se por 404 casas de dois pisos. Com pequenas frentes ajardinadas, espaço para churrascos e paredes exteriores coloridas, o conjunto de vivendas parece um corpo estranho naquela paisagem, a nove quilómetros do centro habitacional de Mineo.

Durante dez anos, a “Residência das Laranjas”, como se designa o espaço, alojou famílias de militares norte-americanos colocados na base aérea naval de Sigonella, utilizada para operações da NATO. A Marinha dos Estados Unidos decidiu terminar o contrato de aluguer do espaço em 2010 e as casas passaram a abrigar requerentes de asilo, por uma renda anual de cerca de 6 milhões de euros, a partir de 2011.

Numa visita ao local na altura da mudança, o então primeiro-ministro Silvio Berlusconi, acompanhado do construtor italiano Paolo Pizzarotti, dono do espaço, publicitava a capacidade para acolher confortavelmente duas mil pessoas.

“NÃO É ACEITÁVEL TER QUATRO MIL PESSOAS AQUI DENTRO”

De acordo com Sebastiano Maccarrone, director do CARA de Mineo, em cada casa onde antes vivia uma família norte-americana, agora vivem entre sete e dez pessoas.

“O Estado italiano coloca à disposição dos requerentes de asilo esta estrutura, que oferece todos os serviços” necessários para “inteirar a pessoa sobre aqueles que são os usos e costumes, mas também as leis do território italiano”, explica Maccarrone, não se cansando de sublinhar o esforço dos técnicos para garantir um bom acolhimento. O maior problema, sustenta, é o tempo de permanência de cada imigrante no CARA, que ronda em média os “14 ou 15 meses”.

Os serviços do centro são garantidos por “mais de 400 pessoas”, entre assistentes sociais, psicólogos, advogados, profissionais de saúde (da Cruz Vermelha italiana), mediadores culturais e polícias - muitos polícias de forças diferentes, presentes no espaço de forma ostensiva.

Há ainda espaços de apoio às mães com crianças pequenas - as que estão em idade escolar são inscritas nos estabelecimentos de ensino de Mineo - aulas de italiano e um “job center”, que dá orientação profissional e organiza actividades formativas. E há também a primeira equipa de futebol formada exclusivamente por requerentes de asilo.

Equipa ASD Cara Mineo 2013/1014. Fotografia: Antonio Parrinello



A “ASD Cara Mineo” está inscrita na Federação Italiana de Futebol e estreou-se na “terza categoria” do futebol amador italiano, no ano passado.

A VIDA NO CARA

É fácil perceber que os dedos de Sebastiano Maccarrone nunca se afastam muito da calculadora. A gestão do centro custa “34 euros per capita por dia”, o que inclui “todos os serviços e até o aluguer desta estrutura”. Ao fim do ano, são perto de 50 milhões de euros. “Uma tranche vem do Governo italiano e outra da Comunidade Europeia”, explica o director.

No cartão de identificação de cada residente são depositados 2,5 euros por dia, que podem gastar no bazar interno ou nalguns espaços comerciais locais.

Há duas paragens de autocarro nas redondezas e há “taxistas” de ocasião que aproveitam para fazer negócio. Enquanto conversávamos com Peter, o rapaz que encontrámos no exterior, dois carros chegaram, esperaram uns 15 minutos e partiram com alguns migrantes. Peter explicou que cobram cinco euros por pessoa por uma viagem até às cidades vizinhas.

Toda a vida do CARA se organiza a partir de uma avenida, onde se concentram os serviços. O advogado Giuseppe d’Amico faz a visita guiada.

O “ambiente mais confortável” de que Giuseppe d’Amico fala fica explícito no plano de intenções desenhado para o centro, mas não é claro que funcione no dia-a-dia, quando todos estes serviços têm de ser multiplicados por quatro mil pessoas. Um problema que se repete um pouco por toda a Itália.

Os milhares de novos migrantes que desembarcam no país a cada semana forçaram o Governo a enfrentar um desafio humanitário e operacional sem precedentes. Numa reacção de “emergência”, Itália aumentou o número de lugares nos centros de recepção para migrantes e abriu estruturas temporárias.

O tipo de acolhimento oferecido por todo o território italiano varia e é difícil traçar um quadro geral. O único ponto comum a todas as estruturas é o facto de estarem no limite da capacidade - muitas já o ultrapassaram. Uma comissão extraordinária para a protecção e promoção dos direitos humanos do Senado italiano reconhecia, em Novembro de 2013, que “desde 2011, registou-se uma progressiva deterioração dos padrões de acolhimento para requerentes de asilo”.



O director do CARA de Mineo garante, contudo, que não há “problemas estruturais no que toca à gestão de quatro mil pessoas”. Sebastiano Maccarrone sublinha que nunca falta água potável, que não há problemas com o escoamento de resíduos ou com a distribuição de comida - “na nossa cantina, conseguimos fazer cinco mil pequenos-almoços, cinco mil almoços e cinco mil jantares por dia”.

Ocasionalmente, a imprensa local e organizações não governamentais veiculam testemunhos que colocam em causa a qualidade da comida e as condições de higiene das habitações.

O Conselho Italiano para os Refugiados, num relatório de Maio de 2014, cita o testemunho de Giuseppe Coniglione, vereador de Vizzinni (próximo de Catânia), depois de uma visita ao CARA de Mineo. Afirmou que os requerentes de asilo “dormem em colchões de esponja sem lençóis, as casas de banho não funcionam devidamente e não há chuveiros dentro das casas”.

Também a associação sem fins lucrativos Borderline Sicilia, que desde 2007 monitoriza no terreno a situação dos migrantes na Sicília, produziu já vários artigos que dão conta de falta de condições mínimas de vida e uma deficiente prestação de cuidados de saúde no CARA de Mineo e noutros centros espalhados pela ilha.

A autorização de acesso ao centro concedida à Renascença pelo Ministério da Administração Interna proibia a filmagem dos espaços privados e obrigava a uma autorização expressa dos ocupantes das casas para as visitar. Foi-nos dito pelos técnicos que nos acompanhavam que nenhum dos migrantes por eles abordados tinha aceitado que entrássemos em casa. Com a câmara desligada - e depois de alguma insistência - foi-nos permitida uma visita-relâmpago ao piso térreo de uma das vivendas.

O que antes seria, provavelmente, uma cozinha e uma sala está transformado em dois quartos, com uma cortina a dividi-los. Num deles dormem três mulheres. A meio da tarde, duas estão deitadas, num sofá e numa das camas, a ver televisão. No único espaço de passagem, ao centro da divisão, há um tabuleiro com chávenas e um bule com chã. Contam que passam os dias assim, que não saem dali “para não gastar dinheiro”.

Se o que nos foi permitido ver está longe de ser um espaço aprumado e com privacidade, também não encaixa nos relatos de péssimas condições. Contudo, importa sublinhar que não vimos as casas-de-banho e que não temos forma de saber o estado das outras casas.

O mediador cultural que nos acompanha diz que a organização do espaço, que inclui uma casa-de-banho, é replicada no andar de cima. Acrescenta que não é permitido cozinhar dentro das casas, por motivos de “segurança”, porque o centro não podia responsabilizar-se se comessem alguma coisa que lhes fizesse mal. Há quem arranje um fogão portátil para cozinhar nos quartos e os técnicos fecham os olhos. Se ficarem doentes, já será responsabilidade deles, porque desrespeitaram as regras do centro, explica.

UM CONTINENTE QUE SE MOVE



De volta à rua principal do CARA, um rapaz da Gâmbia está plantado em frente ao gabinete dos mediadores culturais e pergunta constantemente por “novidades”. Está há cinco meses à espera de uma resposta ao pedido de asilo. “Dizem sempre ‘amanhã, amanhã’”.

Nenhum dos migrantes abordados pela Renascença se queixou da vida no centro. Respondem, invariavelmente, “só quero os meus documentos”. Peter, o rapaz da Nigéria que encontrámos no exterior, vai-se conformando com o ritmo de vida local. “Os italianos dizem ‘piano, piano’ (com calma, com calma)”.

Quando a noite cobre de negro os terrenos agrícolas à volta de Mineo, o CARA assume a forma de uma constelação artificial. Um corpo estranho, plantado no meio do nada, com quatro mil pessoas dentro à espera que os ponteiros do relógio se tornem a mover.