Catastrófico.
O primeiro adjectivo que vem à cabeça de Francisco Carriço quando se fala do estado da economia setubalense é revelador. "Sentimo-nos traídos", desabafa o consultor que lidera a centenária Associação do Comércio e Serviços de Setúbal. Segue a ideia de um país a quem prometeram fundos para ter os mundos que o resto da Europa já tinha. E vai por aí fora, desfiando um cardápio de desilusões, desde a entrada na CEE à presente troika que "nada ajuda".
Vamos por partes. A crise na indústria dos anos 80 fechou grandes fábricas. Os operários enfileiraram no desemprego, mas muitos com cheques na mão. Com as indemnizações, o que fizeram eles? Foram na sua maioria para o comércio, abriram cafés e restaurantes. E outros montaram oficinas de reparação, usando conhecimentos fabris de pintura e chaparia. " Houve um reajustamento pelo comércio. Setúbal é hoje uma cidade de comércios e serviços", diz Francisco Carriço. Tinha que se fazer, admite.
Abrir um café era o mais fácil. Contam-nos que em certos casos "eram dois no rés-do-chão do mesmo prédio". Com a crise do consumo interno e a subida das rendas, quem passou por um aperto na era do escudo juntou-lhe outro no tempo do euro. Mas agora a perda é maior. Viviam já em cima das possibilidades, até que estas se tornaram impossíveis.
Em dois anos, três em cada dez lojas do comércio tradicional setubalense fecharam as portas. Nas ruas nobres de comércio da baixa, como a dos Ourives, a vida acaba mesmo às sete da tarde. A crise encontrou-se à esquina com uma estagnação económica que já apresentava os seus sintomas alarmantes. A península está de novo a girar em torno de algumas grandes empresas. A Autoeuropa ficou como âncora da região, acima da Secil e da Sapec. O turismo em Tróia revelou-se um fracasso para compensar os euros perdidos pelo poder de compra setubalense.
Os contrastes desceram à cidade. A pobreza, com ou sem vergonha, obriga a Cáritas a multiplicar a sua resposta. Fernando Piedade, vendedor de discos à beira dos 59 anos, garante que há muita gente por ali que almoça apenas uma sopa, "custa só um euro". E no entanto um novo grande centro comercial rasga a paisagem da entrada na cidade pela A1. O grupo Auchan anuncia 135 lojas, 1500 empregos, três pisos de consumo e lazer, onde não faltará cinema em nove salas, novas vítimas da pirataria digital. Mas os comerciantes da baixa parecem menos preocupados que a associação que os representa. O paradoxo adensa-se na Praça do Bocage.
Como explicar este tipo de sentimentos?
Jorge Vala, presidente do Instituto de Ciências Sociais e a resposta "positiva" dos portugueses à crise.
Resiliência é o que não falta ao berço da nação.
Guimarães conseguiu transpirar auto-estima no auge da crise com recurso a certa ajuda externa. A Capital Europeia da Cultura amorteceu o impacto da austeridade em 2012. "Do ponto de vista psicológico não fomos afectados pela crise nesse ano. Isso foi muito importante", diz Carlos Teixeira, presidente da Associação Comercial e Industrial de Guimarães. "A economia também funciona com perspectivas psicológicas. A Capital da Cultura veio na altura ideal. Mobilizou os vimaranenses como um modo de lutar contra a crise", sustenta.
Mais de dois milhões de visitantes injectaram pelo menos 100 milhões de euros na economia num dos concelhos mais jovens do país. Estancou-se o fecho de estabelecimentos comerciais e o desemprego que parecia galopante. "Em 2008/2009, estávamos com o dobro do desemprego do país. Chegámos a um pico de 18%, mas começámos a diminuir para 14 a 15%, já em linha com o país", anota Carlos Teixeira.
Um oásis que mascarou a austeridade? Não totalmente. Sapatarias, farmácias, livrarias — todo esse comércio de rua acusou uma diminuição do poder de compra da função pública.
Já não há empresários de Ferrari. A crise do Vale do Ave parece ultrapassada com a reconversão do têxtil e do calçado. Há já falta de mão-de-obra qualificada, embora a fasquia salarial continue a não ir muito além dos 500-600 euros, compensada com prestações suplementares de horas extraordinárias e trabalho nocturno, a bem das encomendas que voltaram em força à indústria do calçado.
A troika faz cá falta, defende António Marques, presidente da Associação Industrial do Minho.
A crise atrai a crise, não falemos muito nela. É a tese de Maria José Marques, sócia, administradora, " funcionária há 40 anos" da Herdmar, uma das maiores cutelarias de mesa do mundo, com sede em Caldas das Taipas.
À sua maneira, é outro exemplo contra a corrente. Escapou à crise do Ave, exportando desde os anos 60, afiando as facas em contínuo para atacar novos mercados. Quando as falências atacaram o têxtil e o calçado, a Herdmar ainda aproveitou alguns operários desempregados. Deixaram de admitir famílias inteiras para precaver desastres sociais.
Os salários rondam os 600 euros," mas as saídas são apenas por pré-reforma ou aposentação", gaba-se Maria José, que invoca um espirito familiar que envolve o operariado. Há já algum tempo, adaptaram-se à subida dos impostos e da factura da electricidade, apostando em horários nocturnos de laboração e instalação de painéis fotovoltaicos.
112 anos depois da fundação, este negócio familiar corre 90% nas mãos das exportações. Maria José varre o mundo para manter e aumentar a média de cinco milhões de euros de volume de negócios. Os talheres da empresa são a criatividade do design e, admita-se, a fibra da irmã Marques a quem cabe desbravar caminho mundo fora.
Maria José Marques devia conhecer a Tininha de Setúbal.
Dona de duas boutiques, esta antiga modista está há 30 anos no negócio da roupa, apostando em clientes fiéis e atendimento personalizado. Com a morte do marido, ficou sozinha a gerir as duas lojas na rua dos Ourives, actual rua Paula Borba.
Os tempos não foram fáceis, as clientes aparecem mas retraem-se à espera de notícias piores. Mas Tininha não alinha no tom cinzento. Quer colorir a rua em Junho para chamar gente à baixa e alargar o negócio neste tempo difícil.
É mulher de fibra óptima.