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Não é fácil escolher mesa para o almoço nalguns restaurantes da baixa de Setúbal, longe da correnteza do choco frito. Impecáveis e vazias, duas dezenas de mesas esperam a nossa decisão, baseada nos sólidos critérios do ângulo para a televisão, do foco do ar condicionado e uma vista térrea da rua. O silêncio da sala é demasiado ruidoso para uma conversa mais delicada.

Pão e a manteiga na mesa, lembra-se um desemprego que persiste acima da média nacional. Acompanha-se o paté com a memória do fim das conserveiras. Fala-se do declínio dos estaleiros, o fecho das fábricas, foi-se o prato principal. Sobremesa? Troia, que não descola apesar do investimento. E há ainda a Secil, de que falávamos antes de aqui chegarmos.

A manhã foi de Mário Moura, 85 anos, médico há mais de quatro décadas na fábrica de cimento. Um concurso trouxe-o a Setúbal em 1953 ("catrapisquei aí a minha mulher"), ficou até hoje. Atravessou o salazarismo, marcelismo, revolução, convulsão, falências, bandeiras negras, a fome.

E agora, ainda no activo, os cortes do novo século. Vive-os na dupla qualidade de pensionista da função pública e trabalhador que mantém ainda um consultório de medicina do trabalho para PME. Em 2012, as falências levaram-lhe 76 contratos, mais 14 que os que conseguiu angariar. Aplicando os cortes mais recentes, diz que vai receber quase metade dos 2100 euros da pensão.

Socialista, admirador de Paulo Macedo, compreende a pouca popularidade de fechar serviços, "toda a gente quer ter o médico ao lado". Critica o excesso de exames e dá o exemplo recente da mulher." Fez sete TAC em 15 dias, apanhou mais radiação que em Hiroshima". Classifica a ADSE como um cancro que alimenta privados, sendo ele próprio, beneficiário do sistema e prestador de serviço.

Partilhou com o ministro a sua experiência de 60 anos em cuidados primários, praticada numa das zonas do país que a crise não poupou. Hoje como ontem, naqueles tempos de D. Manuel Martins, que tanto seguiu depois de uma conversão tardia.

Foi uma história diferente.

Pensionistas do Estado, funcionários públicos no activo, ministérios da Saúde e Educação. Na encruzilhada destas quatro dimensões da administração encontramos um dos cruzamentos mais explosivos da austeridade. Apanha toda a gente na rede, mesmo de modo mitigado. Atravessa qualquer fronteira imaginária que se queira instalar de Albufeira a Melgaço. Em suma, um milhão de portugueses de classe média directamente afectados, entre activos e reformados, excluindo cônjuges e dependentes, para não falar do esmagador universo de utentes.

Números da Administração Pública

Fonte: DGAEP, Dez.2013.

Em Setúbal ou Guimarães, a austeridade salarial atinge de igual forma um médico ou um professor. Mexer na malha dos serviços públicos torna-se apenas mais duro em terras de vitorianos pelas memórias da crise dos anos 80.

A norte, era o Ave e o vale das falências. Uma miséria inesquecível que, embora viesse de longe, assentou praça não muito longe da casa de José Manuel Castro, 61 anos, professor nascido nas Caldas das Taipas e aposentado a meio dos 36 meses de troika. A mulher, também professora, já está na rota da reforma. Nos últimos anos dedicou-se a restaurar a casa própria que recebeu do pai, obra só possível por via da segurança de um salário. Queixa-se das expectativas de reforma goradas face ao contrato de entrada na Função Pública. Foram oito anos no BI e seis de trabalho a mais face ao que previa.

O passado, ai o passado é a cara negra dos cutileiros em fim de jornada. Banhavam-se no rio Ave de Verão e nas fontes das Termas no tempo mais rigoroso. O passado são também os sapatos do único menino que os tinha e logo descalçava para ser um igual na bola de rua. E, nos tempos mais próximos, são ainda os croissants de fiambre deitados ao chão do recreio por meninos de 11 anos com semanada de 50 euros.

Comparam-se as crises e os testemunhos. Percebe-se agora que esta travessia de hoje é menos local e regional na origem, porventura mais nacional e transversal nos seus impactos.

A austeridade tem sido um arrastão que varre toda a república.

E sobra ainda o relato de toda uma outra degradação. Das famílias mais novas que não cuidam de educar; da falta de solidariedade entre professores; de um ensino mais orientado para exames que para viveiros de alunos com pensamento próprio; enfim, uma nostalgia da liberdade de discordar, vencida por um certo medo de falar.

O espírito é crítico.