Rua da Alegria. Ainda sobra Porto na campeã dos Airbnb? Rua da Alegria. Ainda sobra Porto na campeã dos Airbnb? Rua da Alegria. Ainda sobra Porto na campeã dos Airbnb?

Na rua com mais alojamentos Airbnb no Porto, o turismo faz sorrir, mas também causa vítimas. Às vezes são as mesmas. E a identidade do Porto, perde-se?

Marília Freitas
 
 

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É a rua do Porto com mais alojamentos para turistas (116) registados na popular plataforma Airbnb e com mais hotéis (seis), mas, durante o dia, não se vê por aqui o habitual vaivém de forasteiros: não tem monumentos que constem nos guias turísticos nem esplanadas e contam-se pelos dedos os restaurantes que abriram nos últimos dois anos.

Na Rua da Alegria há lojas de material eléctrico, de música, de decoração de bolos, sapatarias, escolas, prédios de habitação e cafés que servem menus de almoço económicos há mais de 20 anos. Há também uma lavandaria “self-service”.

Foi Linda que a abriu. Instalou-se na Rua da Alegria em 2014. Abriu o negócio com o irmão, Mário, depois de ter ido de férias com os amigos ao Porto e ter encontrado apenas uma lavandaria “self-service”. Escolheram a Rua da Alegria para instalar a MarLin Wash por já estar “em desenvolvimento, com vários alojamentos locais e dois hotéis”.

“Pensámos um pouco no turismo”, admite Mário da Costa. Três anos depois, os estrangeiros representam 70% dos clientes e 20% são proprietários ou gerentes de alojamento local.

Mário decidiu mudar-se de Lisboa para o Porto para ajudar a irmã. Ironia do destino: a proliferação do alojamento local está a dificultar-lhe a procura de casa. “Eu sinto dos dois lados. Neste momento, estou à procura de um sítio para ficar – e gostava de ficar perto da loja –, mas não estou a conseguir porque os valores das rendas são um bocado altos. É quase impossível para as minhas finanças. Por outro lado, [o turismo] tem sido óptimo para mim porque o alojamento local tem ajudado no negócio.”

 
 
Fotografia Lavandaria MarLin Wash, na Rua da Alegria.
São sobretudo estrangeiros que entram na lavandaria de Mário e Linda
São sobretudo estrangeiros que entram na lavandaria de Mário e Linda
 
 

Na Rua da Alegria, que liga a Praça dos Poveiros à Rua de Costa Cabral, existiam, a 22 de Julho, 116 propriedades registadas na plataforma de arrendamento turístico Airbnb, referência mundial no sector. Números obtidos através dos dados disponíveis publicamente na plataforma “online” e compilados por Tom Slee, autor de um livro sobre a economia de partilha, que a Airbnb Portugal não se mostrou disponível para comentar.

Alojamentos disponibilizados na cidade do Porto na plataforma Airbnb a 22/07/2017
Alojamentos disponibilizados na cidade do Porto na plataforma Airbnb a 22/07/2017. Dados: Tom Slee
Alojamentos disponibilizados na cidade do Porto na plataforma Airbnb a 22/07/2017. Dados: Tom Slee

A média de preços na Airbnb ronda os 50 euros por noite (na rua e na cidade), um valor abaixo do praticado pelos hotéis. Segundo a Associação de Turismo do Porto e Norte de Portugal, em 2016, o preço médio de uma noite num hotel no Porto era de 83 euros (um aumento de 17% face a 2015).

Na cidade existem 83 hotéis, com um total de 6.023 quartos, a competir com 4.430 alojamentos locais registados no RNAL. Contudo, no site da Airbnb, em Julho, estavam listadas 5.664 propriedades no Porto. São mais 1.490 alojamentos Airbnb do que em Outubro do ano passado.

Número de alojamentos Airbnb no Porto


Dados recolhidos por Tom Slee a partir da plataforma Airbnb

 
 

Airbnb como fuga à crise

Miguel (nome fictício) gere quatro apartamentos na Rua da Alegria. No total, são nove as propriedades que arrenda a turistas através da internet. São quase todas de familiares, à excepção da sua própria casa. Foi precisamente em casa que começou a arrendar quartos, há seis anos, quando ficou sem trabalho na área da engenharia informática.

“Comecei por necessidade”, admite, “foi um complemento excelente para o meu orçamento familiar”. Com três filhos, nem sempre foi fácil gerir a presença de turistas em casa. “O primeiro turista esteve sete dias em minha casa”, lembra. “No final, a minha mulher disse: ‘não quero mais receber pessoas durante tanto tempo’. Mas, na realidade, as coisas correram bem, os miúdos adaptaram-se bem, foi também uma forma de começarem a evoluir no inglês. É tudo uma questão de respeito e de coordenação.”

O projecto foi crescendo e Miguel conseguiu ultrapassar a crise financeira, mas continua a arrendar os quartos da sua própria casa. “Faço-o por prazer”, garante, enquanto enumera as grandes vantagens do crescimento do turismo: cidades reabilitadas e criação de novos empregos. É por isso que tem dificuldade em compreender quem critica os proprietários e investidores no alojamento local.

“Há uns anos, ninguém se preocupava com os idosos que moravam nos prédios degradados, mas agora estão preocupados. Simplesmente, o investimento surgiu, as casas foram reabilitadas… Claro que as pessoas tiveram que sair. Poderia ter havido uma outra forma de fazer as coisas, é verdade. Mas se não há investimento público, vão ser os investimentos estrangeiros que vão ser caridosos?”, questiona. E vaticina: “Isso tem de partir das autoridades locais.”

Com a discussão sobre o alojamento local a crescer no espaço mediático e a marcar a campanha eleitoral no Porto, Miguel sente-se cada vez mais olhado de lado pelos condóminos dos prédios onde arrenda apartamentos a turistas.

“Num dos condomínios há um condómino que tem um cão que passa a noite toda a ladrar e as pessoas não conseguem dormir – é o que dizem os turistas que recebo nesta casa –, e eu não vejo os condóminos preocupados com isso. No entanto, já me vieram apontar que os turistas batem a porta com muita força. Se calhar, essa mesma pessoa que está chateada porque o turista faz barulho tem um emprego num café em baixo que, se calhar, até aqui não tinha”, acrescenta, indignado.

 
 
Fotografia varanda na Rua da Alegria.
A “zona alta” da rua, mais distante do centro histórico, é mais habitada
A “zona alta” da rua, mais distante do centro histórico, é mais habitada
 
 

Investimentos de milhões

Subimos ao terceiro andar de um dos prédios da rua. À entrada do apartamento, uma mesa com um “kit” de boas-vindas: uma garrafa de água, outra de vinho e um papel escrito “Welcome to Porto!”. É Rui Silva quem nos abre a porta, um dos sócios da The Porto Concierge, uma empresa de gestão de apartamentos para alojamento local.

Rui faz a gestão de mais de 400 apartamentos no Porto, 15 na Rua da Alegria, incluindo este, com varanda e vista privilegiada da artéria. A média de ocupação está acima das 21 noites por mês em cada apartamento. A grande maioria (70%) são hóspedes franceses e espanhóis.

A nível nacional, entre os cinco concelhos com mais dormidas em 2015, o Porto foi o que mais cresceu. De acordo com o INE, em 2015, dormiram no Porto quase 2,9 milhões de pessoas.

Cidades com mais dormidas em estabelecimentos hoteleiros em 2015


Fonte: Instituto Nacional de Estatística

Os proprietários dos apartamentos geridos pela The Porto Concierge são diversos: “desde investidores que compram os apartamentos para isto, proprietários que deixaram a casa de estudante e põem esse apartamento no mercado ou locais que já começam a pedir empréstimos para fazer um investimento”, descreve Rui.

Embora a maioria ainda sejam portugueses, há cada vez mais estrangeiros a procurar o Porto para investir. Os franceses aparecem no topo das nacionalidades investidoras, mas Rui nota que há cada vez mais procura “do mercado israelita, turco, suíço. São fundos de investimento que têm o Porto como alvo”. Muitos com investimentos superiores a um milhão de euros.

 
 

“Toda a gente teve que sair das casas”

É meio-dia. Entramos no café O Zé, onde começam a chegar os primeiros clientes para o almoço. Do outro lado do balcão, encontramos a dona Maria. Abriu o café com o marido há 28 anos, na Rua da Alegria. Pouco depois, foi viver para o mesmo prédio. O café, que “já está ultrapassado”, vai fechar no final deste ano e Maria vai deixar de viver nesta rua.

O prédio onde está instalada foi comprado por uma empresa estrangeira e o contrato de arrendamento está prestes a terminar. Os novos donos não propuseram renovação nem Maria quis saber mais. “Os quartos são arrendados a 200 e 300 euros para Erasmus. A minha casa seriam mil e tal euros, digo eu. Não conseguia pagar. E também não sei se ele aceitava”, diz. “Não tenho pena, vou toda contente.”

Maria vai viver para a periferia da cidade, onde já tinha uma casa que, até agora, costumava arrendar, mas houve vizinhos com sorte diferente. “Toda a gente teve que sair das casas, gente que não tinha para onde ir, mas teve que sair.”

 
 
Fotogrfia vende-se e arrenda-se Rua da Alegria.
Ainda há vários edifícios desocupados na rua
Ainda há vários edifícios desocupados na rua
 
 

E poucos foram os que conseguiram ficar no centro da cidade. Pesquisando na internet, as opções de arrendamento são poucas. Encontrámos um duplex a 650 euros e pouco mais. A venda parece ser a opção preferencial dos proprietários. No site OLX, há, por exemplo, um “T2 novo com lugar de garagem” a 130 mil euros, um “T1 remodelado, equipado e mobilado” a 98 mil euros e um T0 usado a 75 mil euros.

 
 

Primeiro o capital, depois as pessoas?

A Rua da Alegria é extensa: 2.200 metros ligam a Praça dos Poveiros à Rua de Costa Cabral. Percorrê-la é entrar num “microcosmos” do Porto e da sua recente transformação.

“É uma zona que mistura funções: tem função residencial, tem comércio, tem pequenas actividades industriais, ensino superior e outras actividades até marginais, é conhecida por isso no Porto”, comenta o sociólogo João Queirós, enquanto calcorreamos a rua.

O passado deu o presente: “Foi o estado de abandono de alguns edifícios que permitiu que se instalassem aqui diversas actividades – sejam hotéis ou alojamento local –, depois de um conjunto de operações de reabilitação.”

 
 
Fotogrfia placas hoteis Rua da Alegria.
Existem seis hotéis na Rua da Alegria
Existem seis hotéis na Rua da Alegria
 
 

João Queirós tem estudado as transformações urbanas e sociais nos últimos anos no centro do Porto. Admite que a cidade está a viver um processo de gentrificação (processo de valorização imobiliária de uma zona urbana, geralmente acompanhada da deslocação dos residentes com menor poder económico para outro local e da entrada de residentes mais ricos), mas defende a teoria de que “primeiro vem o dinheiro, o capital e depois vêm as pessoas”.

O novo fluxo de pessoas na cidade tem ajudado a “travar o ritmo de perda populacional” no centro do Porto nas últimas décadas. “Quando se fala agora do turismo e dos novos residentes, não se deve esquecer que o cenário era de uma grande perda populacional, que é de acreditar que possa estar a ser atenuada”, afirma o sociólogo.

No centro histórico, “o quadro é de grande envelhecimento”, mas João Queirós acredita que pode alterar-se ainda esta década, com a chegada de jovens mais qualificados

Continuamos a subir a rua. Seiscentos números acima do café da dona Maria, entramos no Restaurante Marinho, onde o proprietário sente os benefícios do aumento do turismo. “Principalmente aos jantares, quando as pessoas procuram o restaurante mais próximo do local onde estão a dormir”, detalha Bento Marinho.

 
 
Fotogrfia Bento Marinho
Bento Marinho já vai “arranhando” inglês para comunicar com os turistas
Bento Marinho já vai “arranhando” inglês para comunicar com os turistas
 
 

Bento está há duas décadas na Rua da Alegria e testemunhou altos e baixos na vida da artéria, mas nunca ouviu tantas línguas diferentes.

“Até as pessoas que vivem aqui acham um pouco estranho, acham que esta não é a cidade deles. Para eles, há muitos ‘intrusos’ que sobem as escadas porque alguém arrendou apartamentos aos turistas ou porque ao lado há um hostel. As pessoas estranham esta nova realidade, mas temos que conviver com ela”, afirma.

Bento Marinho habitou-se rapidamente à “nova realidade”. “Traz muita coisa de positivo”, “se não fosse o turismo, muitos estabelecimentos teriam fechado”, acredita.

Mas nem tudo é um mar de rosas. No restaurante, “todos os dias”, Bento ouve histórias de quem teve de deixar a casa porque o prédio foi vendido ou as rendas aumentaram. Alguns são estudantes da Escola Superior de Música e de Artes do Espectáculo (ESMAE), localizada na mesma rua: “antigamente, arranjavam com facilidade quarto e casa”, algo que é hoje “impossível porque os preços subiram muito e porque saíram do mercado para serem arrendadas aos turistas”.

 
 

A identidade constrói-se

Para João Queirós, é preciso pensar no “significado mais amplo que possa ter esta transformação” do Porto, até porque, está a “afectar a vida das pessoas que viviam aqui”.

"Não há mal nenhum que o mercado tenha o seu papel, o que há a considerar é formas de introduzir regulação e contornar os efeitos perversos”, defende. Além disso, “o mercado, actuando assim, penaliza as pessoas com menos recursos”.

 
 
Envelhecimento e perda de população têm caracterizado o centro histórico do Porto nas últimas décadas.
Envelhecimento e perda de população têm caracterizado o centro do Porto nas últimas décadas
Envelhecimento e perda de população têm caracterizado o centro do Porto nas últimas décadas
 
 

Mas estará a perder-se a identidade da cidade? “Muito daquilo que se considera hoje a identidade, o sentimento portuense, é também uma construção e uma cristalização de ideias que não têm adesão à realidade há muito tempo. Aquele Porto que as pessoas dizem que se está a perder, muitas vezes é um Porto que já não existe há 20 ou 30 anos. É ele próprio uma construção sobre uma memória que temos do Porto”, analisa o sociólogo.

A identidade de uma cidade está em permanente transformação. “Hoje, a identidade do Porto é também o turismo. Estão-se a perder umas coisas e a ganhar outras”, constata.

Projectando o futuro, João Queirós apela a “políticas públicas que possam combater as desigualdades sociais, sobretudo no caso da habitação”. Junta-se às vozes dos que pedem investimento estatal na habitação porque “há categorias sociais que não conseguem aceder ao mercado nas condições actuais e, portanto, precisarão de promoção pública de habitação”.


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