A “Silicon Valley” portuguesa mora em Loulé? A “Silicon Valley” portuguesa mora em Loulé? A “Silicon Valley” portuguesa mora em Loulé?

Entre 2014 e 2015, Loulé foi o município que registou o maior crescimento no número de empresas, a seguir a Lisboa. No mapa do “top” cinco, Loulé obriga-nos a desviar o olhar para o sul do país, que graças à “constelação” do turismo cresce em vários sectores.

Teresa Abecasis
 
 

Veja também:

Para comparar os dados com os do seu município, seleccione:


Na área industrial de Loulé, as ruas não têm nome e distinguem-se pouco umas das outras. Nos passeios cinzentos, há mato a crescer. Contornam lotes abandonados e edifícios largos de tamanhos variados, com poucas janelas, e também eles com uma palete de cores monótona: brancos ou cinzentos, com tecto azul escuro. Não se vê ninguém na rua, mas algumas bolsas de carros junto dos edifícios.

No mesmo loteamento há uma loja chinesa, uma gráfica, uma garagem de reparação automóvel, a Associação de Saúde Mental do Algarve. Cada uma parecendo uma ilha no seu lote, partilhando apenas as cores das construções.

É no meio desta palete que o edifício amarelo pálido do Ninho de Empresas do Instituto do Emprego e Formação Profissional se distingue. Lá dentro, uma música conduz-nos até à sala da Innuos, uma empresa portuguesa com três anos. A Innuos concebeu um servidor de música que digitaliza CDs e permite gerir e ouvir a biblioteca de uma forma simples e sem perder qualidade quando ligada a aparelhagens de alta fidelidade.

Nuno Vitorino, 41 anos, está recostado numa cadeira a apreciar o som e convida-nos a fazer o mesmo. Um canto do escritório está reservado para isso: três cadeiras baixas almofadadas viradas para um tapete largo que nos separa de duas colunas de som altas e estreitas com uma “caixa” e um amplificador ao centro. A caixa é o produto topo de gama da Innuos, o ZENith Special Edition, que vai ter apenas cem unidades – os preços começam nos 5.500 euros cada uma. Ouvimos “Get Lucky”, dos Daft Punk.

Amélia Santos, 40 anos, junta-se a nós. Recuamos no tempo cinco anos e viajamos 1.400 quilómetros até Londres, onde Amélia e Nuno viviam. Ela trabalhava na Tesco, ele na Delloite. Ambos engenheiros informáticos saídos do Técnico, em Lisboa, onde se tinham conhecido.

 
 
A Innuos produz servidores para armazenamento e reprodução de música de alta fidelidade.
A Innuos produz servidores para armazenamento e reprodução de música de alta fidelidade.
 
 

“Se me perguntasse há cinco anos se me via como empreendedora, eu diria que não”, recorda Amélia. “Sempre vi o Algarve como um destino de férias.”

A decisão de mudar de vida surgiu depois de fazerem uma prova de conceito e terem percebido que havia mercado para o sistema que agora produzem. Daí até trocarem a cidade mais populosa do Reino Unido pela 35ª cidade com mais habitantes de Portugal foi um ano.

“Mudámos para Loulé porque achámos que, de uma forma geral, o Algarve tem uma muito boa qualidade de vida”, explica. O bom tempo e as praias são trunfos conhecidos. A isso acrescenta-se uma comunidade de ingleses e alemães significativa e uma rede já desenvolvida de logística que permite, “tal como em Lisboa, fazer envios expresso no dia seguinte para toda a Europa ou rapidamente fazer chegar” os sistemas Innuos “a qualquer parte do mundo”.

Só que, ao contrário do que acontece nas grandes metrópoles, remata Nuno, no sul do país não se perde muito tempo em transportes. Estão a 15 minutos do aeroporto de Faro e em duas horas e meia chegam à capital de carro. “Talvez seja mais difícil chegar de Cascais a Lisboa do que propriamente de Loulé a Lisboa.”

 
 
Os produtos da Innuos têm “software” e “hardware” da empresa.
Os produtos da Innuos têm “software” e “hardware” da empresa.
Os produtos da Innuos têm “software” e “hardware” da empresa.
 
 

A empresa emprega hoje nove funcionários e tem planos de contratar mais nos próximos tempos. Está a expirar o prazo em que podem permanecer no espaço do IEFP, mas admitem que já é tempo de procurar mais espaço, sempre dentro do concelho. Ali encontraram tudo o que precisam e só aconselham novas empresas a fazer o mesmo. “O Algarve poderia tornar-se facilmente num ‘Silicon Valley’ português”, garante Nuno Vitorino.

Loulé foi o município onde nasceram mais empresas de 2014 para 2015, a seguir a Lisboa. Foram 1.323, valor que elevou para 11.424 o número de firmas com sede em Loulé, em 2015. No mesmo período, em Lisboa nasceram 4.104 .

Número de novas empresas registadas em 2015


Fonte: INE

A Área Industrial de Loulé é a maior do Algarve, beneficiando de um nó de infra-estruturas que junta a Via do Infante, a Estrada Nacional 125 e a linha de comboio, e da localização privilegiada do concelho – situado no meio da região, vai desde o Alentejo até ao mar. Aqui estão instaladas entre 150 a 170 empresas, de acordo com números da Associação Empresarial da Região do Algarve (NERA).

 
 

A “constelação” do turismo

A expressão de Ernâni Lopes, antigo ministro das Finanças, é utilizada por Vítor Neto, antigo secretário de Estado do Turismo, e agora presidente da NERA.

A maior parte das empresas da região está directa ou indirectamente ligada ao turismo. É a tal “constelação” de actividades que o sector impulsiona. À volta de hotéis e restaurantes nascem empresas das mais diversas áreas – da agricultura às novas tecnologias – e que servem estes serviços.

O edifício do NERA fica uns metros abaixo do do Ninho de Empresas e, tal como os outros à volta, não deixa adivinhar o movimento lá dentro. Uma rampa discretamente aberta num muro branco leva-nos até uma praça ampla, demasiado vazia, onde descobrimos uma fachada moderna toda envidraçada.

“O turismo é o sector dominante em termos de produção da riqueza, de empresas e de emprego”, continua Vítor Neto, que não aceita que se fale em turismo a mais. Foram os turistas que seguraram a região durante o período da crise, que retirou do mapa muitas empresas que levaram consigo conhecimento.

 
 
Não temos turismo a mais”, afirma Vítor Neto
"Não temos turismo a mais”, afirma Vítor Neto
"Não temos turismo a mais”, afirma Vítor Neto
 
 

“Algumas pessoas costumam dizer que o facto de o Algarve ter regredido noutros sectores económicos é consequência do turismo. E regrediu. Há 30 anos, a indústria, a pesca e a agricultura poderiam representar mais de 15% do Valor Acrescentado Bruto (VAB), isto é, da riqueza gerada. Neste momento, representam 7%”. Este retrocesso, argumenta Vítor Neto, acompanhou a tendência nacional, mas o sul do país teve o turismo para “compensar”.

O desinvestimento nestes sectores é culpa da falta de uma estratégia política que invista nos recursos do país, defende. “Muitos algarvios não sabem que a principal exportação do Algarve há 700 anos eram figos. Há 700 anos, há 500 anos, há cem anos, há cinquenta anos. E hoje nós importamos figos da Turquia”, exemplifica.

“O Algarve tem que recuperar e reconstruir os outros sectores económicos para os quais tem recursos”, conclui, sem deixar de repetir, para que fique claro: “não temos turismo a mais, temos é os outros sectores a menos.”

Em 2016, o Algarve foi a região do país onde se registaram mais dormidas, mais de 18 milhões, um terço do total nacional. São quase tantas como Lisboa e o Norte juntos, que somam 20 milhões de dormidas.

Por isso, Vítor Neto vê com naturalidade o crescimento do número das empresas, mas preocupa-se com a natureza das mesmas. Das 1.323, a esmagadora maioria, 1.219, eram empresas individuais. “Enquanto nos outros países aumenta a quota do número de pequenas e médias empresas, em Portugal não. É um mau sinal. É sinal de enfraquecimento.”

Já a taxa de sobrevivência das empresas nascidas em Loulé dois anos antes era em 2015 de 53,86%, o que representa uma melhoria em relação aos anos anteriores.

 
 

As velhas e as novas máquinas

João Simões, 76 anos, foi dos primeiros a chegar à Área Industrial de Loulé, nos anos 1990, ao comando de uma empresa onde trabalha desde os 12 anos, apenas com interrupções para ir à tropa em Angola e uns meses a França.

Percorre os corredores de máquinas da Gráfica Comercial, descrevendo a função de cada uma. Uma imprime os vários cadernos que compõem uma revista ou um livro. Outra cose-os. Outra corta os excessos do papel. Outra dobra panfletos – “20 mil por hora!”. Por todo o lado há papéis de todos os tamanhos, arrumado em pilhas o produto final, ou espalhado em tiras pelo chão o excesso.

Mas onde perde mais tempo é junto de dois velhos monstros industriais raramente utilizados hoje em dia. Abre uma gaveta e mostra os inúmeros chumbos que antigamente se utilizava para imprimir facturas, envelopes, cartas, programas. Tudo de forma artesanal, em máquinas a pedal.

 
 
As máquinas mais recentes e a primeira máquina eléctrica da Gráfica Comercial, comprada por insistência de João Simões quando voltou de França.
As máquinas mais recentes e a primeira máquina eléctrica da Gráfica Comercial, comprada por insistência de João Simões quando voltou de França.
As máquinas mais recentes e a primeira máquina eléctrica da Gráfica Comercial, comprada por insistência de João Simões quando voltou de França.
 
 

João é hoje um dos cinco sócios da empresa onde “não há diferença entre patrões e empregados” porque “estão todos a trabalhar” lado a lado. Não teme o aparecimento das novas empresas baseadas em tecnologia que rodeiam a gráfica, mas teima em repetir os princípios que muito orgulhosamente sempre seguiu: “não temos contratos a prazo. São todos efectivos”.

A Gráfica Comercial não foge à regra da região: a maior parte da receita vem dos hotéis, do turismo. No edifício Inova Center, uns metros mais abaixo, a UnykTV está a inventar formas de os hotéis comunicarem com os seus clientes através das televisões instaladas nos quartos. A Douro Azul, empresa líder de cruzeiros fluviais no Douro, usa este sistema nos seus quartos.

Quem faz a visita guiada é Ignácio Correia, director de produção da Algardata, outra empresa que ocupa a maior parte do edifício e que revende e instala os serviços da UnykTV. A Algardata presta todo o tipo de serviços relacionados com a digitalização de uma empresa – desde o desenvolvimento de software e aplicações, à gestão documental.

São um caso de sucesso. Foram criados há 27 anos pelos pais de Ignácio e hoje, para além dos três filhos, dão emprego a cerca de 60 pessoas em três pontos do país: Porto, Lisboa e Algarve. Ignácio sublinha a qualidade de vida que é possível ter em Loulé, “com clientes em todo o mundo”. O digital dilui as distâncias: “estamos a um telefonema, um WhatsApp, um Messenger de qualquer pessoa.”

 
 
A empresa Algardata foi criada pelos pais de Ignácio e começou por prestar serviços a restaurantes na região.
A empresa Algardata foi criada pelos pais de Ignácio e começou por prestar serviços a restaurantes na região.
A empresa Algardata foi criada pelos pais de Ignácio e começou por prestar serviços a restaurantes na região.
 
 

Ignácio nasceu na Argentina, mas veio muito novo para o Algarve, terra dos pais e dos avós. Diz-se muito viajado, e não quer trocar Loulé por nenhuma outra cidade. As contas são fáceis: demora sete minutos para chegar à praia e cinco para chegar a casa. “Cada vez que vou a Lisboa, isso causa-me uma dor interior que não consigo descrever. Ou sou eu que não estou habituado ou o caos do trânsito em Lisboa está cada vez maior”, diz.

Tem um curso em design gráfico tirado na Universidade do Algarve, certificação em Google Adwords e Google Analytics, lojas “online”, “cloud”, Azure, “machine learning” e inteligência artificial. Com 31 anos, fala como se tivesse o mundo na ponta dos dedos.

Ignácio também tem uma solução para a abstenção, que tem vindo a crescer em Loulé como no resto do país: “no dia em que fizerem o voto digital, o problema está resolvido. É fácil. Com uma aplicação e dois cliques.” Encolhe os ombros como que a constatar o óbvio. “Com tanta teoria sobre a abstenção…”. E já sabe quem poderia tratar desse processo: a Algardata.


Veja também:
 
Top