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DESENHAR PONTES EM PORTUGUÊS

O mar Adriático não se vê de Trebinje, mas sente-se no ar. Não é difícil adivinhar os contornos da cidade croata de Dubrovnik, lá ao fundo, a 30 quilómetros. O clima temperado durante quase todo o ano, os enormes plátanos, as casas de pedra de estilo mediterrânico ajudam a imaginação a empurrar a cidade um pouco mais para a costa.

O que ninguém espera quando desce o árido e rochoso monte Leotar é que dali de baixo, do centro cultural e económico do Sul da Bósnia e Herzegovina, se veja Portugal.

Milana Karadžić e Júlio Neves acabam de mudar-se para a Bósnia e Herzegovina com uma casa portuguesa às costas. Conheceram-se em Rogatica, nas segundas eleições gerais pós-guerra, em 1998. Ela trabalhava como tradutora da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), ele integrava uma missão das tropas portuguesas no país.

Júlio havia de regressar à Bósnia em 2000 para uma missão diplomática em Sarajevo. “Era a presidência portuguesa do Conselho das Comunidades Europeias e nós tínhamos aqui uma representação de 30 elementos. Eu era tesoureiro.” Voltou novamente em 2002 e uma última vez em 2005.

Casaram-se em 2006, foram viver para o Norte de Portugal e tiveram um filho há quatro anos. A oportunidade de Júlio concretizar o sonho de abrir um restaurante, somada ao “factor família”, levou-os a fazer agora o movimento inverso.

Ali não têm de deixar o pequeno Ivo num jardim de infância o dia todo e têm os pais e o irmão de Milana por perto. Trebinje não é a terra natural da família, mas é desde há alguns anos o único sítio a que conseguem chamar casa.

Milana é sérvia bósnia e cresceu em Sarajevo. Tinha 12 anos quando a guerra começou e teve de fugir. Passou por várias cidades e, por mais de uma vez, a família perdeu tudo e teve de recomeçar. Nunca mais voltaram a morar em Sarajevo. Trebinje tem sol, tranquilidade e fica a 200 quilómetros de muitas memórias dolorosas.


MISSÃO: INTÉRPRETE

Trebinje não é o único lugar da Bósnia onde se ouve falar português. Daniela Knežević-Kapetina já não pratica a língua desde 2006 e prefere falar connosco em inglês, mas ainda sabe dizer “saudades”.

Daniela tinha 20 anos quando, em 1997, o seu caminho se cruzou com o das tropas portuguesas, em Rogatica, no Leste da Bósnia. “Eles precisavam de um intérprete por um mês. Comecei como assistente de línguas e acabei por trabalhar para as forças portuguesas até 2006. Era para ser um mês e fiquei nove anos.”

A presença das Forças Armadas portuguesas na Bósnia durou 16 anos, integrada primeiro nas Missões de Apoio à Paz da NATO e, depois, da União Europeia. Passaram mais de 11 mil militares pelo país, entre 1996 e 2012.

Logo no primeiro ano de missão, quatro militares portugueses morreram - dois na sequência da explosão de uma mina e dois num acidente com uma chaimite. Em 2004 morreu outro militar, vítima de um acidente com uma viatura empilhadora.

Os intérpretes no terreno eram fundamentais, mas a tarefa acarretava um lado delicado. Daniela Knežević-Kapetina recorda que, sobretudo nos primeiros tempos, “as pessoas de cá nem sempre olhavam para essas tropas como amigas, questionavam por que é que eles estavam aqui.”

O facto de ser mulher, de ter 20 anos e de estar no meio de militares não facilitou a vida a Daniela, que tinha de lidar com insinuações dos cidadãos locais. “Devo dizer que tive alguns períodos muito difíceis, de pessoas a olhar para mim com má cara.” Ainda assim, foi uma oportunidade de escape.

DESCOBRIR A NACIONALIDADE AOS 16 ANOS

Daniela Knežević-Kapetina também é sérvia bósnia, como Milana, mas a sua família nunca saiu de Sarajevo. Depois da guerra deslocou-se uns quilómetros para o lado, para Sarajevo Este, que já pertence à República Srpska. Durante a guerra não conseguiu escapar ao cerco.

Durante aqueles três anos, eram a única família sérvia na rua onde viviam. O pai de Daniela tinha amigos muçulmanos que o ajudaram e nunca foi preso, mas não se livrou de sustos. O maior aconteceu em Maio de 1992. Foi ferido, uma bala entrou pelo abdómen e saiu pela perna. Foi operado no Hospital de Koševo, no centro da cidade, e não se podia mover. Três dias depois apareceu à porta de casa a sangrar. Tinha fugido.

“Nessa noite houve uma batalha entre muçulmanos e sérvios nos arredores de Sarajevo e ele ouviu um soldado muçulmano a entrar no hospital e a gritar ‘quero ver se há algum Chetnik aqui!’”

Os Chetniks eram uma organização paramilitar nacionalista que operou nos Balcãs durante a II Guerra Mundial. Durante a guerra de 1992-1995, croatas e bosníacos usavam o termo para designar as unidades sérvias nacionalistas.

“Ele tinha uma faca. O meu pai escondeu a ficha médica, para ele não ver o nome dele, esperou pela noite e fugiu do hospital. A ferida estava aberta, a sangrar. A minha mãe coseu-o com uma agulha da roupa”.

Daniela nunca deixou de se sentir culpada por estarem naquela situação.

Sobreviveram. Conseguiram fugir em 1995. Muitos anos mais tarde recuperaram a casa na baixa de Sarajevo, que fica no território administrado por croatas e bosníacos, mas nunca mais lá moraram.

A guerra mudou profundamente o perfil demográfico da capital da Bósnia e Herzegovina. Estima-se que hoje quase 80% dos residentes tenham origem muçulmana - mais 30% que em 1991. Havia 25% de sérvios antes da guerra. São 12% agora.

Hoje, Daniela tem dois filhos pequenos e lamenta que não possam conhecer a realidade que ela experimentou antes da guerra. “Na escola primária eles não se misturam como nós nos misturávamos. Estão limitados. Os muçulmanos só vêem muçulmanos, os sérvios só vêem sérvios, os croatas estão com croatas”.

Para quem cresce hoje na Bósnia, as diferenças vão bem mais longe. É a própria noção da história do país que segue caminhos díspares. “Na República Srpska tens um programa, na Federação é outro programa diferente. Os muçulmanos escrevem a sua história, a sua versão da situação depois da guerra. Os sérvios têm outra versão da história.”

A tradutora receia os efeitos que daqui podem sair, mas não permitiria que os filhos estudassem a versão muçulmana dos acontecimentos. “Eu não a aceito. Tudo o que lá está escrito é contra o meu povo. Claro que não permitiria que os meus filhos apendessem isso. E, claro, compreendo perfeitamente que os muçulmanos façam o mesmo com os filhos deles”.

Vinte anos passaram e Daniela estima outros tantos para que o país saia da situação de estagnação em que está. Se puder mandar os filhos estudar na União Europeia, não hesitará. “Depois, se eles quiserem regressam, se não ficam lá. É com eles. Mas não quero que me perguntem mais tarde por que é que não lhes dei outras hipóteses”.


O ESTÔMAGO DE GORAŽDE

Os 70 quilómetros entre Sarajevo e Goražde fazem-se hoje em cerca de uma hora e meia. Há 20 anos, para um cidadão comum, não se faziam de todo. Só os veículos da ONU circulavam naquele estreito corredor acidentado.

Goražde esteve cercada do início até ao fim do conflito. Na Primavera de 1993 foi declarada zona sob protecção da ONU. Depois da queda de Srebrenica, foi por um triz que a cidade que abraça o rio Drina não teve o mesmo destino.

Os acordos de paz mantiveram-na em território administrado por muçulmanos e croatas. Está rodeada pela República Srpska e uma pequena língua de terreno liga-a a Sarajevo. É como um pequeno estômago pendurado no mapa.

Depois da guerra, em 1996, o batalhão português, integrado na Missão de Apoio à Paz da NATO, foi fundamental para restabelecer a comunicação com o resto do território. Os movimentos das populações locais não eram de todo tarefa simples e as “chaimites” portuguesas tinham várias vezes de escoltar autocarros civis na passagem por território do antigo inimigo. Aconteciam incidentes, como apedrejamentos de autocarros, e chegaram mesmo a registar-se disparos contra os militares.

A comunicação com os locais era, por vezes, complexa. Para a facilitar estava lá Muhamed Bešlija, um professor de francês que em pouco tempo acrescentou mais uma língua à bagagem. Foi intérprete das Forças Armadas portuguesas durante 11 anos, enquanto a sua cidade recuperava lentamente.

Aqueles anos marcaram-no. Um dos filhos conta-nos que Muhamed chegou a ponderar pintar a casa com as cores da bandeira portuguesa. Os olhos desaparecem debaixo do sorriso quando fala das duas vezes que visitou Portugal. A última foi em Maio, quando acompanhou a equipa de andebol feminino de Goražde num torneio em Alcanena. O gosto do bacalhau não lhe sai da memória.

Hoje, a sua Goražde é uma cidade em contra-ciclo com o resto do país. Tem fábricas que exportam componentes de automóveis para marcas como BMW, Audi, Porsche, Mercedes. É apontada como exemplo de recuperação económica num país onde o desemprego atinge os 40%.

O êxodo de cidadãos que se verificava até 2008 tem vindo a inverter-se. As fábricas locais empregam cada vez mais gente - tanto muçulmanos, a larga maioria de residentes na cidade, como sérvios, que vêm da vizinha República Srpska.

Damir Bešlija é neto de Muhamed e estuda língua e cultura turca em Sarajevo. Hoje já é mais provável que um jovem de 17 anos perspective uma vida aqui e Damir tem o futuro todo pela frente. Dois minutos de conversa são suficientes, contudo, para as costas de Damir duplicarem de tamanho e se começar a ver, bem nítido, quase palpável, o passado que carrega - e que começou muito antes de ele nascer.

“Há divisões, podemos vê-las, podemos senti-las, há um sentimento estranho quando estamos na companhia de pessoas de outras religiões, quando nos sentamos com sérvios ou croatas”, confessa. Quer fazer o seu melhor “para evoluir na forma de comunicar”, mas sem “esquecer o que aconteceu”.

Damir é o muezim de uma das muitas mesquitas de Goražde. Está encarregado de fazer a chamada para as cinco orações diárias, mas já raramente sobe ao minarete. Tudo é automático agora, só tem de carregar num botão.

Se ao menos fosse tão simples resolver outras questões. “Nós não temos problemas com os sinos das igrejas ou com os minaretes das mesquitas. Temos problemas com os nossos políticos. Eles alimentam-se do nosso sofrimento. A sua única missão é criar problemas entre as nacionalidades.”

Mas Damir quer mesmo sublinhar que um esforço “de diálogo” deve ser feito. Não tem outra opção. “Nós não podemos escolher, vivemos aqui, este é o nosso país, um país de três nações, três religiões, três línguas. Precisamos, temos de gostar dele.”