O CORPO DE UM FRANKENSTEIN
O homem senta-se à janela, num restaurante com vista para a cidade. Os funcionários quase adivinham que vai pedir a tarte de batata acompanhada de sumo de rosas. É um velho cliente. Costumava subir aquela colina durante a guerra, quando conseguia afastar-se por umas horas do trabalho no hospital.
Bakir Nakaš olha para Sarajevo e rebobina mais de duas décadas, quando brincava a atirar água da fonte, ali a meio da subida, às outras crianças do bairro. Cresceu na ex-Juguslávia, no seio de uma família de muçulmanos, debaixo do regime comunista do marechal Tito. “Quando eu acabei o ensino secundário, quase 95% de nós consideravam-se jugoslavos - não sérvios, não croatas, não bosníacos”.
Quando a Jugoslávia se dissolveu, era chefe do departamento de doenças infecciosas do Hospital Militar de Sarajevo. Reparou que nos nomes de todos os partidos que surgiram na nova Bósnia e Herzegovina, em 1992, figurava a palavra “democrático”, mas identificou-lhes imediatamente o vírus endémico nacionalista. Aquele contágio não podia ser travado.
Muitos médicos, de todas as etnias, que não concordavam com as novas políticas começaram a abandonar o hospital. Quando a guerra estalou, a instituição já era civil e ganhou o nome de Hospital Estatal de Sarajevo. Mal deixou de ser hospital militar, transformou-se em hospital de guerra. Bakir Nakaš era o novo director e tinha, de repente, uma situação limite para gerir.
“Restavam apenas 35 funcionários. Não tínhamos medicamentos, não tínhamos comida, não tínhamos electricidade, não tínhamos água”, recorda. A primeira bomba dirigida ao hospital caiu a 13 de Maio de 1993. “E fomos atingidos por 155 tiros de morteiro. Um piso foi quase integralmente destruído.”
O cerco a Sarajevo pelas tropas sérvias durou quase quatro anos e fez mais de 13.900 mortos. Só o Hospital Estatal foi atingido “mais de 200 vezes”. Todas as actividades foram transferidas para a cave. “Operações, cozinha, tudo acontecia em divisões protegidas das bombas. Diariamente, atendíamos entre 20 e 100 feridos.” A maioria dessas operações, incluindo amputações, eram feitas sem anestesia.
Quando o conflito terminou, em 1995, o Hospital Estatal de Sarajevo - depois da guerra rebaptizado Hospital Abdulah Nakaš, em homenagem ao cirurgião, irmão de Bakir, que não saiu de lá durante todo o cerco à cidade - era um monte de escombros. À imagem de toda a cidade. À imagem de todo o país, onde mais de 100 mil pessoas morreram.
A 14 de Dezembro desse ano, o Presidente sérvio, Slobodan Milošević, o Presidente da Bósnia e Herzegovina, Alija Izetbegović, e o Presidente croata, Franjo Tuđman, assinam em Paris o acordo de paz que tinha sido forjado em Dayton, nos Estados Unidos.
O resultado foi um país dividido em duas entidades administrativas - de um lado uma federação bósnio-croata, subdividida em dez cantões; do outro a República da Sérvia, ou República Srpska. Há ainda um distrito administrativo separado, Brčko, no nordeste. Têm um Parlamento comum e três Presidentes da República - um sérvio, um croata e um muçulmano - que rodam no cargo de oito em oito meses.
O dicionário diz-nos que uma nação é um “conjunto de indivíduos ligados pela mesma língua e por tradições, interesses e aspirações comuns”, mas a Bósnia e Herzegovina desafia qualquer definição genérica. É uma nação com três nacionalidades dentro. É um país com três línguas oficiais que quase nada diferem entre si.
O país que saiu do Acordo de Dayton “é o corpo de um Frankenstein”, considera Bakir Nakaš. “Há partes que estão desenhadas para estar juntas e que nunca poderiam funcionar juntas.” O vírus nacionalista foi controlado, mas não erradicado. “A Europa tem problemas económicos, financeiros, ecológicos, mas na Bósnia e Herzegovina ainda estamos a lidar com problemas nacionais, que é algo que nos impede de avançar.”
O antigo director do Hospital Estatal de Sarajevo testemunhou no Tribunal de Haia contra Radovan Karadžić, antigo líder dos sérvios da Bósnia, e Ratko Mladić, chefe do Exército da República Sérvia durante a guerra. Foi também testemunha nos casos dos comandantes do corpo Romanija do exército sérvio da Bósnia Stanislav Galić (condenado a prisão perpétua) e Dragomir Milošević (condenado a 29 anos de prisão), e do antigo líder do exército sérvio Momčilo Perišić (ilibado).
Bakir Nakaš sentiu algum consolo na experiência. “O meu testemunho é a forma que tenho de tentar ser a voz daqueles que foram mortos ou feridos.” Já a palavra “justiça” é de mais complexa aplicação. “Sem julgamentos não há justiça. Mas para os que perderam familiares ou que perderam partes do seu corpo, é muito difícil que sintam que esta é a justiça que mereciam.”
NO BANCO DOS RÉUS
O Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ) foi criado em 1993 pelas Nações Unidas para julgar os crimes de guerra que ocorreram depois da desintegração da Jugoslávia. Dos mais de 160 indivíduos indiciados, 79 foram condenados. Foram ouvidas mais de 4.600 testemunhas.
Entre os vários veredictos agendados para os próximos meses, o mais aguardado é o de Radovan Karadžić, antigo líder dos sérvios da Bósnia, que deverá ser conhecido em Outubro. Karadžić enfrenta 11 acusações de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade pelo seu papel na guerra da Bósnia.
O julgamento do chefe do Exército da República Sérvia durante a guerra, Ratko Mladić, decorre desde Maio de 2012.
Mais de 20 pessoas foram acusadas pelo Tribunal de Haia de envolvimento no massacre de Srebrenica. 14 foram condenadas. Em 2004, o Tribunal de Haia determinou que o crime ocorrido em Julho de 1995 foi “um acto de genocídio”.
HOLANDA FALHOU PROTECÇÃO DE SREBENICA
Em Julho de 2014, um tribunal holandês decidiu que a Holanda é culpada da morte de mais de 300 homens e rapazes que foram entregues às tropas sérvias bósnias em Potočari, perto da cidade de Srebrenica. Os soldados holandeses falharam na protecção daqueles refugiados e o Estado holandês deve compensar as famílias das vítimas, determinou o tribunal distrital de Haia.
A actuação das tropas holandesas em Srebrenica é há muito um trauma para o país. Em 2002, o governo do então primeiro-ministro Wim Kok demitiu-se na sequência de um relatório que atribuía responsabilidade às autoridades da Holanda e à ONU, pelo envio de tropas mal equipadas e sem um mandato claro que lhes permitisse proteger o enclave.
FOI A GUERRA. E DEPOIS?
Entre os quase quatro milhões de cidadãos bósnios, há quem esteja cansado de ouvir o mesmo discurso ao longo de duas décadas. “Não quero mais desculpas. Estou farta de ouvir ‘foi o genocídio, foi a guerra, este foi o agressor’. Tudo isso aconteceu, temos provas, mas e depois? E depois?”, dispara a voz rouca e indignada de Velma Šarić.
Aos 36 anos, Velma sente que vive num país onde “toda a gente identifica os problemas” e depois nada acontece. “O Acordo de Dayton é uma bela desculpa para toda a gente dizer simplesmente que não pode fazer nada, porque está bloqueada por Dayton”.
Velma Šarić estudou Ciência Política na Universidade de Sarajevo e começou cedo a trabalhar como jornalista e em várias organizações não governamentais (ONG). Como correspondente do Institute for War and Peace Reporting (IWPR) cobriu julgamentos de crimes de guerra na região. Foi consultora em filmes e conferências internacionais. Tudo o que estivesse relacionado com o pós-guerra, Velma agarrava. A experiência pessoal do conflito deixou-a num estado de urgência permanente. Trabalha todos os dias para evitar mais surpresas.
Quando a guerra começou, tinha toda a ingenuidade recomendável aos 13 anos. Filha de um assistente social “profundamente comunista” e de uma modista praticante do islão, com um irmão de três anos, vivia uma vida pacata e tranquila em Kladanj, perto de Vlasenica, no Nordeste da Bósnia. “Uma noite, de repente, a minha mãe diz que temos de fazer as malas e deixar a nossa casa. Eu era adolescente e estava a tirar das paredes os meus posters dos New Kids on the Block e da Madonna para levar comigo.”
Velma não sabia ainda o que significava uma guerra. Não podia imaginar que viveria os próximos três anos “sem água, sem electricidade, numa cave, num centro de refugiados, a partilhar a casa de banho com 300 pessoas”.
FOTOS: "Ordinary Heroes", Post-Conflict Research Center
Em 2010, fundou com a norte-americana Leslie Woodward o Post-Conflict Research Center (PCRC). Com a ajuda de voluntários que chegam de todo o mundo, desenvolvem projectos educativos, multimédia, com o objectivo de “encontrar soluções que envolvam os jovens no processo de construção da paz, fazendo algo concreto no terreno”.
Um exemplo é a série "Ordinary Heroes", que reúne testemunhos de “pessoas que, durante a guerra, enfrentaram o mal e ajudaram pessoas comuns”. O projecto foi divulgado numa exposição itinerante por todo o país e foi a base de sessões educativas dirigidas a jovens, desafiados depois a encontrar histórias semelhantes. “Através destes exemplos extremos, de pessoas que deram a própria vida para proteger os outros, tentamos desafiá-los a pensar como reagiriam se alguém na rua precisasse de ajuda. Seriam apenas espectadores?”.
O projecto resultou em cinco documentários e foi recentemente premiado pela ONU, pela criatividade e potencial para ser replicado por todo o mundo.
Neste momento, o PCRC trabalha no projecto “Remembering Srebrenica”, que vai expôr 100 mil ossos de cerâmica e reunir toda a informação produzida sobre o massacre num arquivo digital a instalar no memorial de Potočari. “Esperamos, nos anos que se seguirão ao 20º aniversário, em cooperação com o memorial, construir o maior arquivo multimédia e visual que reúna num só lugar todos os conteúdos sobre o genocídio de Srebrenica.”
QUEM CARREGA O PESO DA HISTÓRIA?
Todos os esforços de Velma Šarić são concentrados nos jovens, sobretudo nos que crescem longe das grandes cidades, mais expostos à narrativa “enviesada” e impregnada de uma “retórica de divisão” que “os meios nacionais estão a espalhar nestas comunidades”.
No actual estado de coisas, “estes jovens não têm qualquer hipótese de serem bem sucedidos, mesmo que sejam extremamente talentosos, tenham uma boa educação e óptimos currículos”, lamenta Velma. “A maioria está deprimida e só vê esperança em sair da Bósnia e ir trabalhar para outro lado.”
Šimo Maršić tem dedicado os últimos 11 anos a tentar contrariar essa tendência. A fórmula em que aposta é aparentemente simples e simultaneamente complicada, dadas as circunstâncias bósnias: misturar.
É croata bósnio e dirige o Centro Juvenil João Paulo II, que desde 2004 promove actividades como acampamentos e workshops que juntam católicos, muçulmanos e ortodoxos por todo o país. Chegam a mais de seis mil pessoas por ano.
Da varanda do edifício ainda em construção, o Papa Francisco fez um apelo aos jovens bósnios na sua visita a Sarajevo, a 6 de Junho: que estejam à altura da responsabilidade de serem filhos de uma primavera.
Entre os católicos, a emigração de jovens em massa é uma preocupação ainda maior. A comunidade de croatas bósnios já era minoritária antes da guerra - representavam uma fatia de 17% em 1991, quando 44% eram bosníacos e 31% sérvios - e não parou de diminuir desde então. O Alto Comissariado da ONU para os Refugiados estimava que fossem 14,6% em 1996. Os dados do último censo, feito em 2013, ainda não estão disponíveis.
Tomislav Mlakić, responsável pelo Centro Catequético de Sarajevo, viu toda a família abandonar a Bósnia depois da guerra. “Tenho cinco irmãos e três irmãs, todos foram embora. A nossa aldeia foi destruída, a nossa casa, a nossa igreja, tudo”. Mlakić ficou. “Este é o meu lugar, é onde Jesus precisa de mim.”
“Não é fácil ser uma minoria, independentemente de onde se vive. Todos os dias tem que se lutar pelos direitos. Mas é possível e acreditamos nesse processo”, afirma Mlakić.
A experiência mostra-lhe que, quando há descuidos, a história pode repetir-se. Lembra que “esta cidade é um símbolo” e que “também a I Guerra Mundial começou aqui”, quando o arquiduque Francisco Fernando foi assassinado, em 1914, na Ponte Latina que atravessa o rio Miljacka. “Tudo está ligado.”