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Em Julho de 1995, o mundo aprendia que Srebrenica se lê "Srebrenítza", à custa da execução de mais de sete mil homens e rapazes. Numa “zona protegida” pela ONU acontecia o maior massacre em solo europeu desde a II Guerra Mundial. Vinte anos depois, a Bósnia e Herzegovina ainda está a aprender a pronunciar a palavra “democracia”. Em três idiomas diferentes.

Por Catarina Santos, na Bósnia e Herzegovina

“Qual é o teu conflito?”, pergunta um vendedor de rua, que de Portugal só conhece o nome Ronaldo. “Qual é o teu conflito?”, insiste, encostado num canto à espera de clientes, abrigado do sol abrasivo de Sarajevo. “É com os espanhóis?”. Parece confuso com o encolher de ombros e a explicação de que não temos nada comparável à realidade bósnia.

Na complexa teia de divisões étnicas e políticas que caracteriza este país, a concepção do mundo desenha-se ainda em contraponto com o “outro”. Um jogo de barreiras entre sérvios ortodoxos, croatas católicos e bosníacos - o termo usado para definir a nacionalidade dos muçulmanos. Para quem saiu da guerra, daquela guerra, 20 anos é tempo nenhum.

Avdo Purcović tem essa marca tatuada por dentro. Encontramo-lo de esfregona na mão nas escadas da pensão restaurante Misirlije. O sol de Srebrenica é igualmente castigador. Avdo passa uma mão pela testa suada e senta-se na esplanada. Por hoje está feito.

O negócio corre bem. "Estou satisfeito, tendo em conta a situação em Srebrenica neste momento. Se podia estar melhor? Claro. Podia sempre estar melhor." Como toda a cidade.

A pensão Misirlje fica numa encosta que desce até ao centro da cidade. Recebe clientes do Japão, Austrália, Alemanha, Áustria, Reino Unido, Malásia. A maioria vem visitar o memorial, mas este ano é completamente atípico. "Por causa do 20º aniversário do genocídio, que aconteceu em 1995, estamos à espera de 70 mil clientes, muitos jornalistas. Ouvi dizer que será o maior evento com cobertura mediática no mundo."

É um momento simultaneamente importante e difícil para quem cá mora. Muitos familiares de vítimas vivem nos Estados Unidos, na Austrália, e não vêm todos os anos. Alguns começam a chegar para enterrar os restos mortais de familiares que foram finalmente identificados e que vão juntar-se aos mais de seis mil que têm uma lápide no memorial de Potočari, a meia dúzia de quilómetros de Srebrenica.


"Acreditem ou não, todas as mães que perderam os seus filhos e parentes sonham que eles ainda estão vivos. Encontram consolo no facto de não haver vestígios." Os funerais que acontecem todos os anos por esta altura marcam o fecho de um capítulo longo. "Quando os ossos são encontrados e quando enterram o caixão, esse é o momento em que ganham consciência de que aquela pessoa morreu. E podem então encontrar paz. É muito estranho."

Pesadas as coisas, Avdo acha que teve "uma história feliz". Nasceu em Srebrenica há 30 anos, no seio de uma família muçulmana. “Há 100 anos, a minha família estava na Sérvia. O meu bisavô não era de Srebrenica, era do outro lado do rio Drina, de Užice. A limpeza étnica começou antes, durante a I Guerra Mundial, e ele mudou-se para aqui. Agora aconteceu ao meu pai e à minha família."

Em Março de 1992, sete dias antes de a guerra chegar ali, o pai pegou nele, na mãe e nas duas irmãs e levou-os para casa de uma tia em Tuzla, a 100 quilómetros. Regressou para cuidar do restaurante que já então geria, no mesmo local. E ficou preso em Srebrenica até ao dia em que as tropas do general sérvio bósnio Ratko Mladić chegaram à cidade, em Julho de 1995.

O MASSACRE DE SREBRENICA

Naquele início de Verão de 1995, entre sete e oito mil muçulmanos desarmados foram executados por forças sérvias bósnias à volta de Srebrenica. Os corpos foram atirados para valas comuns e mais tarde desenterrados com escavadoras e novamente enterrados por toda a região, de modo a encobrir os sinais do crime. Ainda hoje continuam a aparecer novas ossadas. Tudo aconteceu em poucos dias.

O enclave de Srebrenica era, desde 1993, uma “zona protegida” pela Força de Protecção das Nações Unidas, desmilitarizada. Em 1995, a missão estava entregue a cerca de 400 tropas holandesas.

Quando as forças sérvias bósnias começam a bombardear a cidade, entre 6 e 8 de Julho, o exército holandês pediu apoio aéreo ao comando da ONU em Sarajevo. Recusado. As forças sérvias capturam 30 holandeses. Repete-se o pedido urgente de apoio, que nunca chega.

A 11 de Julho, mais de 20 mil muçulmanos, sobretudo mulheres, crianças e idosos, procuram refúgio na base do batalhão holandês em Potočari, a 6 km de Srebrenica.

Nesse mesmo dia, o líder das tropas sérvias bósnias Ratko Mladić entra em Srebrenica.

A 12 de Julho, mulheres e crianças são transportadas em autocarros para território muçulmano. Homens e rapazes são detidos para “interrogatório por suspeita de crimes de guerra”. São mantidos em armazéns na região. A 13 de Julho, as tropas holandesas entregam aos sérvios centenas de homens refugiados nas suas instalações. Em troca, são libertados 14 reféns holandeses.

Milhares de outros homens e rapazes muçulmanos, adivinhando o que os esperava, não foram para Potočari a 13 de Julho e fugiram pelas montanhas. Muitos foram capturados por forças sérvias e executados. A 16 de Julho começam a ouvir-se os primeiros relatos do que tinha acontecido, quando os que conseguiram sobreviver à longa fuga chegam a território dominado pelos muçulmanos.

Depois de Srebrenica, a comunidade internacional não podia mais manter o jogo de neutralidade que tinha ensaiado durante todo o conflito bósnio. Em Agosto e Setembro de 1995, a NATO bombardeou intensamente posições sérvias bósnias. Um acordo de paz foi assinado em Dezembro desse ano.



Abdulah Purković sobreviveu três anos numa cidade cercada, que em 1993 ganhou protecção da Organização das Nações Unidas (ONU). Foi vendo as ruas encherem-se de refugiados muçulmanos que chegavam de várias outras cidades da região. Voluntariou-se para trabalhar com os Médicos Sem Fronteiras e foi esse cargo que o salvou.

Foi um de dois bosníacos que conseguiram sair vivos da base de Potočari, onde estava estacionado o batalhão holandês ao serviço da ONU, encarregado de proteger o enclave. O outro sobrevivente chama-se Hasan Nuhanovic (que a Renascença entrevistou em 2011), era intérprete dos holandeses, e teve de informar a mãe, o pai e o irmão que eram obrigados a abandonar as instalações. Foram entregues às tropas de Mladić e foram executados, juntamente com mais de sete mil homens e rapazes muçulmanos.

O RETORNO

Quando a guerra acabou, em 1995, “as feridas estavam frescas” e a família Purcović vivia a saltar de terra em terra. “Eu mudei cinco vezes de escola primária, não sei quantas casas e senhorios, várias cidades”.

Por essa mesma altura, Jovana Jovanović regressava com a família, depois de três anos a viver na Sérvia. “Os meus avós regressaram primeiro, para ver o que tinha acontecido à casa, para limpar tudo. E nós voltámos porque faltava um ano para a minha irmã ir para a escola e os meus pais não queriam que ela estudasse na Sérvia.”

Os cinco anos que Jovana tinha na altura já lhe permitiram gravar na memória o contraponto com Belgrado, de onde tinha saído. “Lembro-me do aspecto de Srebrenica quando voltámos. Era horrível. Não havia electricidade. A cidade estava cheia de pessoas, mas só se via cães na rua, lixeiras incendiadas, porque as pessoas estavam a limpar as casas. Era uma visão muito estranha.”

Naqueles primeiros anos pós-guerra, as fogueiras não demoraram a apagar-se e a vida começou lentamente a seguir a possível normalidade. “Na minha rua, éramos cerca de 15 crianças a brincar juntas, ficávamos na rua a noite toda.” Eram todos sérvios bósnios como ela.

Se o curso da história tivesse sido outro, Avdo Purcović podia estar entre esses miúdos a correr pelos campos de Srebrenica durante a noite, mas naquela altura não havia um único muçulmano por aquelas paragens. Em 2000, Abdulah Purcović fartou-se de ser refugiado e foi dos primeiros a regressar.

A guerra obrigou dois milhões de pessoas – quase metade da população da Bósnia e Herzegovina em 1991 – a fugir dos seus locais de residência. Para milhares de famílias por todo o país, de todos os grupos étnicos, reaver a propriedade depois do conflito não foi simples.

“A nossa casa já não era nossa. Tinha sido dada a um soldado sérvio como recompensa pelo seu esforço na guerra”, conta Avdo. Depois de um processo “muito lento e doloroso”, com a ajuda das instituições internacionais que estavam no terreno na altura, a casa foi devolvida em 2002.

O restaurante Misirlje foi reconstruído e Avdo continuou o negócio em 2010, quando terminou os estudos e o pai se reformou. As paredes da entrada da pensão estão cheias de fotografias a congelar memórias de grandes almoçaradas com Abdulah Purcović à volta dos tachos. “Dule”, como os amigos o tratavam, morreu no início do ano passado.

OS FANTASMAS DE SREBRENICA

Antes do conflito, os muçulmanos compunham três quartos da população local. O município ficou atribuído à República Srpska (lê-se "serpska", significa república sérvia bósnia), nos acordos de paz assinados em 1995. Estimativas não oficiais dizem que hoje vivem cerca de nove mil pessoas em Srebrenica - 60% sérvios e 40% bosníacos. Mas as estatísticas são terreno pantanoso na Bósnia. Em mais de 20 anos, só um censo foi feito no país, em 2013, e os resultados ainda não estão disponíveis, devido a desentendimentos entre os gabinetes de estatística das duas entidades que governam o país.

Srebrenica não é uma terra de ninguém, mas é terra de pouca gente e de pouco movimento. As várias casas abandonadas na cidade e nas estradas em volta denunciam os que nunca voltaram, os que tentaram e entretanto desistiram de construir um futuro ali.

O jardim-de-infância fica mesmo ali no centro da cidade. Ao fim da manhã, estão 75 crianças a dormir num edifício do tamanho de uma antiga escola primária portuguesa. A directora Vesna Jovanović fecha a porta com cuidado para não os acordar e afasta-se para o jardim.

Vesna mudou-se para Srebrenica há 20 anos, “por amor”. É natural da Sérvia, conheceu lá um rapaz bósnio que tinha fugido da guerra e não o largou mais. Em 1995 regressou com ele, adoptou a cidade como casa e recusa-se a embarcar em visões pessimistas do futuro. “Uns vão e outros vêm. É um movimento circular. Temos crianças a nascer, graças a Deus. Agora, este infantário é pequeno.” Está a tentar reunir fundos para construir um novo, com capacidade para 200 crianças.

GENOCÍDIO É UMA PALAVRA CONTROVERSA

Como acontece sempre que se aproxima um aniversário da queda de Srebrenica, o alarido político acende-se. Este ano foi em torno de uma proposta de resolução da ONU para marcar os 20 anos do massacre, submetida pelo Reino Unido. O documento refere a palavra “genocídio” e vários políticos de topo sérvios bósnios defendem que, se a resolução for adoptada, só vai agravar as tensões étnicas no país.

Os sérvios reconhecem que “um grave crime” aconteceu ali, mas a palavra “genocídio” é rejeitada pela maioria. Mesmo depois de o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, em Haia, ter determinado que foi isso que aconteceu naqueles dias de Julho de 1995.

Outra polémica recente: a detenção na Suíça do antigo comandante das forças muçulmanas, Naser Orić. A Sérvia emitiu um mandado de captura em 2014, acusando-o de crimes de guerra contra sérvios bósnios na região de Srebrenica, durante a guerra de 1992-1995. Mas a Suíça acabou por decidir extraditá-lo para a Bósnia, o que irritou as autoridades sérvias bósnias, que acusam a comunidade internacional de falta de imparcialidade.

Orić foi considerado culpado de crimes de guerra pelo Tribunal de Haia, em 2006, mas foi depois ilibado na sequência de um recurso, em 2008.


Quando lhe perguntamos como se distribuem em termos étnicos, o rosto de Vesna muda. “Para mim é uma pergunta estranha. Tudo aqui é misturado, não nos apontamos uns aos outros por isso. Pelo menos eu não o faço. Temos empregados, pais, crianças de diferentes nacionalidades”.

Vesna e Jovana não aceitam que tenha havido um genocídio em Srebrenica, mas consideram que isso é passado e que as tensões étnicas que subsistem são alimentadas por jogos políticos. E só querem seguir em frente, sem marcas nas costas.

PROJECTAR UM DESERTO

A fuga para Tuzla aos seis anos evitou que Avdo Purković crescesse com imagens para lá de terríveis na memória. Ainda assim, armazenou suficientes para passar a ver o mundo como “um lugar muito ridículo”. O desfile de inacção internacional que viu pela televisão, naqueles anos, moldou-lhe definitivamente a opinião sobre os que “decidem o futuro das nossas vidas”.

“Para eles é um jogo. Alemanha, Reino Unido, Estados Unidos, Rússia. Tu estás a ser morto e eles estão a discutir se chegam a um acordo hoje ou amanhã. Não importa. E tu estás a morrer.” Hoje, Avdo não confia na ONU, não confia na União Europeia e não confia no futuro de Srebrenica.

A câmara municipal local é a única no território da República Srpska cujo presidente é bosníaco. Um fenómeno apenas possível porque, até às últimas eleições, os antigos residentes da cidade podiam continuar a votar para a presidência da autarquia mesmo que não vivessem ali. Houve mudanças na lei eleitoral, entretanto, e é altamente provável que o próximo presidente seja sérvio.

Para já, o gabinete continua ocupado por Ćamil Duraković, que argumenta que a República Srpska tem dificultado propositadamente as condições de vida dos bosníacos na cidade.

“A maioria dos refugiados bosníacos não regressou a Srebrenica porque a possibilidade de terem uma vida normal é reduzida, devido à destruição de infra-estruturas, das casas, e à falta de oportunidades de emprego”, diz-nos Nermina Muminović, funcionária da autarquia. Muminović afirma mesmo que “as políticas repressivas da República Srpska têm como propósito asfixiar a cidade de Srebrenica, tornando os novos investimentos praticamente impossíveis”.

De acordo com a câmara, as empresas locais contam-se pelos dedos: uma pequena fábrica de distribuição de fruta, uma empresa de extracção de zinco, uma fábrica de paletes e um aviário. “Todas juntas empregam cerca de 2.500 pessoas”, assegura Nermina Muminović.

Avdo Purković defende que, “em alguns aspectos, a luta continuou. Não é com as armas, é uma guerra económica para limpar os bosníacos deste território. Se criassem condições para eles regressarem, em poucos anos haveria novamente 50 ou 60% da população a nosso favor. E não seria mais República Srpska”.

O dono da pensão Misirlje atribui uma quota-parte de culpa aos próprios bosníacos. “Estamos a desistir muito facilmente do que é nosso.”

A maior derrota, diz-nos antes de regressar à cozinha, é o estado de dormência que vê à volta, “que pessoas comuns e honestas estejam caladas, que sejam meros observadores”.

Alarga o diagnóstico a todo o país e pensa nos mais novos, que emigram em bando todos os dias, fugindo de uma taxa de desemprego jovem de 60%. “Mesmo os que têm trabalho percebem que a única coisa racional que podem fazer é deixar a Bósnia. Jovens bosníacos, sérvios e croatas têm noção de que não compensa o sacrifício. Por isso toda a gente está a ir embora.”

Ali perto, Jovana acaba o turno de algumas horas num salão de jogos. Está de malas feitas para ir tomar conta de crianças na Alemanha. Tem 25 anos e fartou-se. “Eu gosto muito deste país, é muito bonito, tem rios, lagos, floresta. Se tivesse hipótese de viver uma vida normal aqui, provavelmente ficaria. Mas sei que isso não é possível, porque não se consegue encontrar emprego.” Depois de aprender alemão espera conseguir trabalhar lá na sua área, enfermagem.