Antes da poeta de punho livre, antes da mulher na política, que foi deputada e defendeu a liberdade, a “madrugada”, antes mesmo da chegada da liberdade, e a defendeu com ela já “inteira e limpa”, antes de tudo isso, Sophia era já profundamente inconformada. E podia nem tê-lo sido – afinal, cresceu entre burgueses e aristocratas. Mas era. E deve-o, primeiro e logo cedo, à mãe, Maria Amélia.
“A Sophia dizia que, quando era jovem, a política não era para as mulheres, mas que a mãe, não lhe ensinando a política, ensinou a revolta. Ensinou a indignação perante as situações de injustiça. Ela teve a sorte de ter pais que não eram inteiramente conformistas. Vinha de um meio em que tinha muitas pessoas, da família e de relações, obviamente do salazarismo. E essas pessoas muitas vezes até deixavam de lhe falar. Até há uma história muito célebre, em que uma delas lhe disse: ‘Mas como é que a menina escreve coisas dessas, a menina que conhece este meio por dentro?!’ E a Sophia respondeu: ‘Este meio não tem dentro, só tem fora…’, acentuando a superficialidade moral da burguesia”, recorda José Manuel dos Santos, administrador da Fundação EDP e por muito tempo um amigo íntimo de Sophia, à Renascença.
Numa entrevista de 1982, Sophia recorda a primeira memória que tem de revolta. Revolta social. “Na minha infância havia uma certa miséria não escondida, que depois desapareceu. Foi arrumada não se sabe para onde pelo Estado Novo. Essa grande miséria muito patente era uma interrogação enorme, um escândalo no meio do mundo e da infância. Em determinada altura, e por influência de pessoas com quem convivi, esse escândalo foi-se estruturando e tomando forma mais definida. O que era só uma indignação ou um espanto ou uma angústia foi-se transformando numa escolha política. A partir de certo momento pensei ser necessária uma luta pela justiça que passava pela política. O que está na base da minha opção política é o não aceitar o escândalo. É o não aceitar que haja pessoas inteiramente sacrificadas. O considerar que não é possível passar por cima do cadáver dos outros ou por cima de vidas diminuídas e desumanizadas.”
Mas a Sophia revoltava-a também uma certa forma de estar “pregadinha” na vida. Logo na infância revoltava. Era aluna, então, do Colégio Sagrado Coração de Jesus, no Porto. “As freiras tinham uma enorme paciência com as minhas excentricidades. Havia certas regras que eu não cumpria lá muito bem. Rebelde? Um bocadinho, sim, noutros casos não, era mais uma contestação das meninas do meu colégio, todas pregadinhas. E lembro-me de uma história que ficou célebre, porque as meninas desapareciam, iam-se pentear, iam para o espelho, molhavam os cabelos, marcavam imenso as ondas. Eu, um dia, pedi para sair também. Meti a cabeça debaixo da torneira e voltei toda a pingar. E como no livro de leitura havia um desenho do Bocage com o cabelo todo molhado, elas chamavam-me Bocage.”
Para compreender “uma indignação ou um espanto ou uma angústia” de Sophia, é preciso recuar à infância e à educação. Para compreender como a política se torna em si premente, ativa, desafiadora de um regime ditatorial, é preciso recordar a relação que manteve por quase toda a vida com Francisco Sousa Tavares, com quem se casa em 1946 e de quem tem cinco filhos.
Antes mesmo do casamento, e quando se tratavam ainda, em carta, durante o namoro, por “Xixa”, ela, e “Tareco”, ele, Sophia escreve a Francisco: “Gosto de si porque você gosta da vida. Libertou-me da minha loucura. Um dia, uma pessoa disse-me que eu estava prisioneira, encadeada, e que estava à espera de alguém que me viesse libertar. Matar os monstros e romper as correntes. Gosto de si porque você gosta da vida." Anos depois, em 1962, Sophia dedicaria a Francisco o livro “Contos Exemplares”. E escrevia-lhe, na dedicatória. “Para o Francisco, que me ensinou a coragem e a alegria do combate desigual.” Mas essa foi a dedicatória mais pública. Num exemplar que ofereceu ao marido, escreve: “Para o Francisco, com a memória dos inumeráveis combates que travamos juntos todos os dias contra a estupidez, a mentira, a mediocridade. Com a minha confiança em todas as coisas verdadeiras e claras, em todas as matérias de Esperança.”
Sophia tinha somente 14 anos quando o Estado Novo se instala. Com ele convive por mais 41. Afronta-o. Combate-o. Este devolve-lhe muitas vezes a afronta e o combate. “As formas, os gestos, as instituições do Estado Novo irritavam-me profundamente, em todos os aspetos, desde a linguagem até ao estilo”, confessaria em entrevista a Eduardo Prado Coelho, em 1986.
A primeira irritação profunda ocorre talvez em 1956. O irmão e arquiteto João Andresen ganha o concurso para a construção de um monumento ao infante D. Henrique, em Sagres, monumento a que o arquiteto dá o nome de Mar Novo. No entanto, Salazar recusa o resultado do concurso e refere que o Conselho de Ministros decidiu não construir tal obra. A revolta de Sophia, que vinha já de trás, ganha forma de livro. Publica “Mar Novo” em 1958. “O livro é um livro de rotura, politicamente muito significativo. Se lermos com atenção o livro reparamos que há um grito de revolta. E esse grito é pela injustiça que tinha sido cometida [contra o irmão] e, simultaneamente, buscando nas raízes históricas a necessidade de olhar a cultura portuguesa, sendo ela fiel às raízes, em nome da liberdade”, explica Guilherme d’Oliveira Martins, amigo de Sophia que com ela partilhou o trabalho no Centro Nacional de Cultura, à Renascença.
Este é o tempo
Este é o tempoApesar da subversão em “Mar Novo”, Sophia não era tida pelo Estado Novo, nem pela polícia política, a PIDE, como “subversiva” – ao contrário, por exemplo, do marido Francisco. Aliás, na ficha de Sophia na PIDE lê-se apenas: “Nada consta em desabono do seu porte moral. Politicamente consta que é desafeta ao atual regime, não lhe sendo, no entanto, conhecidas quaisquer atividades.” Ainda assim, teve sempre a vida revolvida. A censura sabia quem recebia em casa, no primeiro andar do número 57 da Travessa das Mónicas à Graça, entre políticos, escritores e jornalistas, de Mário Soares a Jorge de Sena e a José Saramago; acompanhava quaisquer eventos públicos em que surgisse, sobretudo apresentações de livros e colóquios; cada telefonema era escutado e relatado; as cartas tinha-as intercetadas; as entradas e saídas vigiadas.
Sophia sabia-o bem. Certo dia, à porta da casa de um amigo, apercebeu-se de que um agente a fotografava à distância. Aproximou-se e pediu-lhe o número telefone, dizendo que gostaria de receber uma cópia do retrato que lhe fizera. “Esta minha mulher é extraordinária! Não viu que era um PIDE?", reagiu Francisco. Sophia vira, claro.
“Censura? Os seus poemas não lhes passavam despercebidos. Sabemos que a PIDE a vigiava, quer à Sophia quer ao marido. Chegou a ser chamada obviamente à sede da PIDE. Ela sabia que aquele seu combate era um combate que a punha em risco, mas ela achava que tinha que correr esse risco”, explica José Manuel dos Santos. Sophia recordaria, em entrevista, em 1989: “Antes do 25 de Abril tive muitos problemas, sim. Não me censuraram os livros, mas censuraram-me entrevistas, por exemplo. E censuraram-me poemas nos jornais. Sim, cortaram-me poemas inteiros. Às vezes eu nem percebia muito bem porquê. Umas vezes percebia, mas muitas das vezes não. Revistavam a casa. Censuravam-me as cartas dos amigos. Lembro-me de que, um dia, o homem do correio me disse: ‘A senhora desculpe, mas há aqui muita coisa que não chega.’ Tinha ordem para ser examinado. E tive vários amigos presos.”
À sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, só foi chamada uma vez – lá entraria outras vezes, mas sempre para visitar presos. E é chamada porque assina um panfleto contra a polícia política, intitulado “Os serviços de repressão do regime empregam métodos que uma consciência humana bem formada não pode tolerar e um espírito cristão tem necessariamente de repudiar”. Estávamos em agosto de 1959. A intenção da PIDE nunca foi prender ou torturar Sophia como a outros fizera – dizia-se até que haveria indicações do interior do regime para “não se tocar” em Sophia –, antes intimidar. Mas Sophia não se intimidava. E reagiu, como sempre perante as “mãos horrorosas dos fascistas” (escreveu-o numa carta a Jorge de Sena), com humor, sarcasmo, quase afronta.
“Quando fui chamada à PIDE resolvi tomar o assunto com humor. Quando me telefonaram a dizer para me apresentar, eu perguntei: ‘Onde é que fica?...’ O homem ficou um tanto desmoralizado. Assunto? Era sobre uma carta, assinada por várias pessoas. Uma carta ao Salazar sobre a PIDE. Fui recebida por um polícia que devia ser o encarregado da operação e que tentou explicar-me que a polícia era cheia de brandos costumes e que não fazia mal a ninguém. E, a certa altura, eu aproveitei tanta amabilidade. Tinha-me esquecido de levar cigarros, de maneira que fumei todos os cigarros do polícia. Depois pedi-lhe um copo de água. Então, ele abriu a porta e gritou lá para dentro: ‘Tragam um copo de água, mas lavem o copo!’” – Sophia sofria de misofobia, um medo patológico da sujidade.
Desta visita de Sophia à sede da PIDE há registo de cinco páginas de perguntas do inspetor adjunto José Aurélio Boim Falcão e do chefe de brigada Armando Borges Rego, datilografadas pelo agente Fernando Gaspar, na ocasião o escrivão. É confrontada com um exemplar do panfleto. Perguntam-lhe se é a autora. Sophia responde que “não”, que tomou conhecimento do documento pelo marido e que “concordou em absoluto” com o seu teor. Aos inquiridores ressaltavam semelhanças com publicações comunistas – afinal, por diversas vezes Sophia viu serem-lhe apreendidos, na correspondência, exemplares do jornal “Avante”. Sophia recusa semelhanças, “nem na forma, nem nos fins, nem na finalidade”. “E mais não declarou”, lê-se na ata do interrogatório.
À saída, perguntou ao inspetor: "Este elevador é seguro?" O agente diz-lhe que sim, que era, e Sophia atira de chofre, desafiadora: "Eu só tenho medo de duas coisas na vida: de elevadores e de fantasmas." E utilizou as escadas para sair.
Sophia afronta o regime, essencialmente, no que escreve. Francisco Sousa Tavares não. E é preso duas vezes, em 1966 e 1968, devido à oposição que assume. Antes mesmo de ser preso, na noite de 11 de março de 1959, Sophia, os cinco filhos e a empregada vão dormir para casa de um familiar, na Rua Alexandre Herculano, enquanto decorria uma operação militar contra o regime: a “Revolta da Sé”. Francisco, então um jovem alferes monárquico, comandava os 80 militares que, às 3h30, deveriam avançar para o Batalhão de Caçadores n.º 5, na Avenida Marquês de Fronteira, apelando às restantes tropas para se rebelarem também. Acabaram denunciados, o golpe abortado, e Francisco é detido.
Fizera-a, a “Revolta da Sé”, enquanto apoiante do general Humberto Delgado – ele, Delgado, que ambos, Francisco e Sophia, apoiaram também nas eleições presidenciais de 1958. Por causa desse apoio público, Francisco, que era sub-inspetor do trabalho no Ministério das Corporações, acabou despedido, situação que deixaria o casal em dificuldades financeiras.
"A bem da Nação", a PIDE emitiu, a 19 de outubro de 1966, uma ordem de captura em nome de Francisco. Mas Francisco não acabaria logo ali preso. Só após três semanas de apertada vigilância o foi, precisamente na véspera de ser entregue ao Presidente da República Américo Thomaz um requerimento, assinado por ele e por Sophia, atacando o próprio Salazar, onde se podia ler: "É doloroso verificar como todo o destino coletivo de um povo pode estar sujeito ao capricho ensimesmado de um homem, enredado numa teia sinistra e colossal de ambições, de interesses, de situações adquiridas.”
Enquanto Francisco esteve preso em Caxias, na cela 27, no 2.º andar do Pavilhão Norte da Cadeia da PIDE, "por exercer atividades subversivas contra a segurança do Estado", as visitas de Sophia tinham um vidro a separá-los. Uma das detenções coincide com o aniversário de casamento. “Faz hoje 20 anos do nosso casamento! Inacreditável que tenha passado tanto tempo, sem que nada tenha envelhecido. Amanhã volto a vê-lo por detrás do vidro. Ao fim de 20 anos de casamento, voltamos ao namoro de janela. A nossa união será agora ainda muito mais funda, mais alegre, mais livre”, escreveu-lhe a mulher. Escreveria outras vezes.
A correspondência trata essencialmente do quotidiano: dos filhos, das contas pagas ou por pagar, de pequenos recados, de gripe, do carro, de almoços, jantares, os dias passados em família na ausência de Francisco, de amigos comuns, da falta que Sophia sente do marido e de como a prisão não abalou essa saudade, antes a fortaleceu. Nunca falam de política. Não diretamente. Haveria, contudo, um código para o fazerem, como recordou o filho Miguel Sousa Tavares em entrevista, ele que muitas vezes acompanhou a mãe nas visitas. “O código era fabuloso. Não era fácil decifrar e sobretudo escrever em código. A PIDE apreendia poucas cartas, porque aquilo parecia inocente. Mas as palavras tinham uma ordem de um enigma inventado por eles que era brilhante.”
Enquanto o marido estava preso em Caxias, Sophia ajudou a fundar a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, que foi sede de oposição ao regime e prestava apoio jurídico, funcionando clandestinamente no Centro Nacional de Cultura, a meros 50 metros da sede da PIDE – um centro a que tanto Francisco como Sophia estavam ligados desde a fundação, por um grupo de jovens católicos em 1945; o centro é presidido por Francisco desde 1957 e por Sophia a partir de 1965.
Guilherme d'Oliveira Martins, que continua hoje ligado ao Centro Nacional de Cultura, recorda esses dias. “Sophia diz que fez de tudo no Centro Nacional, inclusive as tapas para pequenas festinhas. E dizia, com muita graça, que só não lhe pedissem grandes intervenções e mesas redondas. Mas a verdade é que teve um papel extraordinariamente importante em 1965, uma vez que, com o fecho e a proibição da Sociedade Portuguesa de Escritores, Sophia candidata-se à direção do Centro Nacional de Cultura. O Centro é um núcleo importante de nítida oposição, moderada, ao regime. Tudo isto se faz à volta de Sophia. Sophia tem aqui um papel sereno, muito, muito comedido no que se refere à sua presença, mas muito corajoso. É ela que vai à PIDE, sempre na primeira linha. Começaram por ser encontros muitos ligados ao pensamento, à filosofia e à poesia, mas depois as reuniões acabavam, claro, por ter algum debate mais político. E sobretudo por uma questão: o pontificado de João XXIII. Porquê? Porque anuncia o Concílio Vaticano II, que vai ser motivo de um debate muito renovador no Centro, mas um debate muito incómodo, uma vez que uma das questões fundamentais que está na posição da Igreja é que a Igreja não é eurocêntrica e que a Igreja tem de se virar para o terceiro mundo, compreender naturalmente os problemas da dimensão colonial, da guerra no Ultramar. São questões que preocupam muito a Sophia.”
A religião, tendo Sophia uma educação católica, tem na poeta um lugar de revolta também. “A Sophia era uma cristã, a presença de Deus – embora um Deus muito pessoal – está presente na obra dela constantemente. Mas ela achava que muitos daqueles que se diziam católicos, não eram verdadeiramente católicos – e, sobretudo, não seriam cristãos. Porque não eram capazes de denunciar as injustiças e as opressões. E é também em nome dessa fé que ela intervém na política. Ela está ligada aos chamados católicos progressistas e à Capela do Rato”, recorda hoje José Manuel dos Santos.
Em 1962, no “Livro Sexto” (que é distinguido em 1964 pela Sociedade Portuguesa de Escritores com o Grande Prémio de Poesia), obra onde Salazar é descrito, por exemplo, como um “velho abutre” que “tem o dom de tornar as almas mais pequenas”, Sophia escreve um outro poema, “As Pessoas Sensíveis”, que critica precisamente o conformismo que, na visão de Sophia, estava instalado entre católicos.
As Pessoas Sensíveis
As pessoas sensíveis não são capazesEm 1964, Sophia assina o “Manifesto dos 101 Católicos”, que contesta a participação de Portugal na guerra em África. Sophia e outras personalidades escrevem ao Presidente Américo Thomaz na tentativa de o persuadir, enquanto católico, a pôr fim ao conflito. “Tem Vossa Excelência afirmado publicamente a sua qualidade de católico. E é, pois, por nos sentirmos irmanados numa fé e numa moral, que vimos respeitosamente solicitar a intervenção de Vossa Excelência para que a nossa maneira de pensar e sentir seja conhecida de outros portugueses”, lê-se na carta, que foi enviada para a agência France-Presse.
Apesar do profundo desconforto que gera no regime, o manifesto não surtiu qualquer efeito prático. Então, os progressistas resolveram agir. Desde janeiro de 1967, o primeiro dia do novo ano era também, por vontade de Paulo VI, o “Dia da Paz”. No dia 31 de dezembro de 1968, e finalizada a missa vespertina na Igreja de São Domingos, em Lisboa, os fiéis presentes alertaram o padre Correia de Sá de que ninguém ia arredar pé. E, assim, passaram a noite, até às cinco da manhã do primeiro dia do ano de 1969, a ler textos sobre a guerra, cartas de soldados, a cantar (são de Sophia os versos “Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar” cantados ali por Francisco Fanhais) e a rezar. O movimento foi abafado pelo regime nas notícias. Em 1972, então na Capela do Rato, também em Lisboa, os progressistas procuraram de novo manifestar-se contra a guerra do Ultramar na passagem de ano. Mas, desta feita, o regime estava já alerta. Às sete da tarde a igreja é cercada por tropas de choque. Os agentes ordenam que se evacue o local em 10 minutos. Os fiéis resistiram à ordem: dezenas foram presos, 14 ficaram detidos na prisão de Caxias.
“Penso que uma educação católica cristã predispõe para a política na medida em que nos responsabiliza. Quem ouve dizer desde pequena que se ‘Me abandonaste quando eu tinha fome, se Me abandonaste quando eu tinha sede, não Me encontrarás no reino dos céus’ é necessariamente posta perante uma exigência em relação aos outros”, explica Sophia, anos depois, em 1986, a Eduardo Prado Coelho.
Os derradeiros anos do Estado Novo, seja ainda com Salazar, seja, depois, com Marcello Caetano, tornam-se de derradeira luta e derradeira repressão. Os episódios sucediam-se. Desde logo, o casal Sophia e Francisco estava impedido de sair do país.
Em 1965, Sophia foi proibida de viajar para Itália a fim de participar, a convite do PEN Club e da UNESCO, num congresso de escritores na Jugoslávia. Francisco Sousa Tavares, enquanto advogado da mulher, insurge-se e escreve diretamente ao diretor da PIDE: “Lamenta-se que tivesse procedido com ela como se se tratasse de um criminoso internacional, impondo-lhe o vexame de impedir a sua saída já no aeroporto. É desagradável que a UNESCO e o PEN Club tenham conhecimento de que uma escritora de projeção internacional, e de singular autoridade social e moral, tenha sido impedida de sair do país pela polícia.” Sophia foi impedida de viajar, segundo se lê num boletim da PIDE de 20 de abril de 1965, por fazer parte da Comissão Nacional Pró-Amnistia aos Presos Políticos Portugueses e por ter escrito, conjuntamente com outros subscritores, ao Presidente Américo Thomaz, apelando ao indulto destes presos – que a PIDE considerava “apenas comunistas”. Em agosto, Sophia e Francisco, numa ida de carro para Espanha, são impedidos novamente de seguir viagem, agora na fronteira de Vila Real de Santo António.
Além de Francisco, outros amigos próximos de Sophia foram presos, entre os quais Mário Soares. Soares é detido em março de 1968 pela PIDE e deportado para São Tomé, devido às proporções do escândalo “Ballet Rose”, envolvendo o abuso sexual de menores por responsáveis do Estado Novo e figuras da alta sociedade. O regime acreditava que o artigo, publicado no “Sunday Telegraph”, tinha Mário Soares como fonte. Soares, na verdade, tomou conhecimento do caso em casa de Sophia e Francisco, na Travessa das Mónicas, através do advogado Joaquim Pires de Lima.
Sophia foi despedir-se do amigo Soares ao aeroporto, ela e outros opositores do regime, numa varanda repleta de gente, em que se gritava “Mário! Mário! Mário!” – acabariam dispersados, uma centena, à bastonada.
Soares regressa a Portugal volvidos oito meses, já com Marcello Caetano a substituir Salazar, e convida Sophia e Francisco a integrar as listas da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática, a CEUD, uma espécie de “embrião” do Partido Socialista que disputaria (sem lograr eleger algum deputado) as legislativas de 1969.
“Mário Soares é a figura política de referência dela, antes e depois do 25 de Abril. Ela falava dele como um resistente. E diz que a coragem do Mário Soares não era uma coragem escura e quezilenta, era uma coragem cheia de ânimo. Ele criava à volta dele, diz a Sophia, um espaço de ânimo. Quando precisava de ser confortada e consolada, até nos seus combates, ia a casa dele, ouvia a palavra dele, bebia o chá de limão que a Maria Barroso lhe fazia, e saía de lá sempre cheia de coragem também ela”, explica José Manuel dos Santos.
Isabel Soares, filha de Mário Soares, recorda à Renascença um episódio dessa campanha eleitoral. “O meu pai convenceu-a, por exemplo, a ser candidata pela CEUD. Pediu-lhe para ser candidata, pedido que ela aceitou imediatamente. E foi candidata pelo círculo do Porto. A Natália Correia também estava com a CEUD, em Lisboa, e a Sophia não suportava a Natália, o estilo da Natália, e o meu pai convenceu-a a ir pelo Porto porque estaria longe da Natália. Ela respeitava muito o meu pai e admirava muito o meu pai. Lembro-me de que a Sophia tinha um ar sempre de quem estava a planar. Tinha uma presença muito própria, de alguém que tinha luz própria. Irradiava luz, era uma pessoa luminosa. Lembro-me de o meu pai ser preso, deportado. E lembro-me de a Sophia aparecer, solidária, por exemplo, quando ele foi deportado para São Tomé. Mas também nas prisões, ela aparecia sempre a manifestar a sua solidariedade.”
A propósito de um regime que “há perto de 50 anos subverte os valores de justiça, liberdade e cultura”, Sophia declarou, durante um comício da CEUD: “Entrei nesta campanha eleitoral para ajudar a modificar um sistema político e social que em minha consciência considero injusto. A situação portuguesa é grave e urgente. Temos de tentar conseguir já tudo aquilo que possa ser conseguido já. Aos pobres é costume dizer: ‘Tenham paciência’. Mas na verdade devemos dizer: ‘Não tenham paciência’. Devemos pedir ao povo português que procure o caminho de uma ‘impaciência pacífica’. Que se exprima e combata sem violência, mas com teimosia e firmeza. Que use desta arma pacífica que é o voto. E é por isso que reclamamos eleições livres para que o povo português volte a ter confiança no sistema eleitoral.”
Revolução
Como casa limpaSophia soube do 25 de Abril por um amigo, que lhe telefonou às quatro e meia da manhã, alertando-a para ligar a rádio, alertando-a para a revolução. É seu o poema, escrito somente dois dias após a revolução, que descreve aquele dia como “o dia inicial inteiro e limpo”, um momento a partir do qual “livres habitamos a substância do tempo”.
“O 25 de Abril foi dos momentos de máxima alegria da minha vida. Foram dias que vivi em estado de levitação”, recorda Sophia em conversa com Eduardo Prado Coelho, em 1986. Já em 1997, descreveria o momento assim: “A revolução teve mais que o sentido político, para algumas pessoas. Teve, também, um profundo sentido poético. Há um poema – do Rimbaud, creio – que diz que haverá um tempo em que a poesia se tornará interior à vida quotidiana. E houve uma fase em que isso aconteceu em Portugal.”
Sophia assumiria um lugar ativo, politicamente, nos anos que se seguiram. E aceitaria o convite de Mário Soares para integrar o Partido Socialista, acabando eleita deputada à Assembleia Constituinte. “Tinha uma certa obrigação de participação”, explica, numa entrevista de 1982. Em março de 1975, no jornal “Portugal Socialista”, escreve: “Estamos no Partido Socialista porque acreditamos que é possível construir um mundo mais justo, mais livre e mais fraterno. Um mundo onde cada homem possa estar no centro da vida. Um mundo onde ninguém seja explorado, onde ninguém seja atirado para a valeta, um mundo onde ninguém seja atirado para as traseiras da vida. Há dois inimigos da esquerda que devemos combater, a demagogia e as falsas vanguardas ideológicas. O demagogo é aquele que conhece a arte de enganar e excitar as massas. O demagogo é aquele que conhece a arte de utilizar a palavra para enganar e para mentir. A demagogia é a caricatura da política.”
“Ela vivia [o cargo de deputada] com uma grande euforia, entusiasmo pela liberdade. Mas também com uma grande preocupação contra a demagogia, aquilo a que ela chamava o ‘capitalismo das palavras’. E preocupada com a preservação da ‘madrugada’, que se mantivesse a pureza da ‘madrugada’, que é o tempo justo e limpo que ela queria. Ela queria que o 25 de Abril não se degradasse e não se pervertesse. Ela afligia-se com certas discussões. Na Assembleia [Constituinte] fez uma grande intervenção sobre cultura”, recorda Manuel Alegre à Renascença.
Foi a 2 de setembro de 1975, a propósito do Artigo 28.º e da liberdade de criação intelectual, artística e científica. “Sabemos que toda a cultura real trabalha para a libertação do homem e que, por isso, toda a cultura real é, na sua raiz, revolucionária. Sabemos que não podemos construir, de facto, o socialismo se não ultrapassarmos o uso burguês da cultura. A cultura não é um luxo de privilegiados. Se o homem é capaz de criar a revolução, é exatamente porque é capaz de criar a cultura”, discursou Sophia no hemiciclo.
Mas esta não é a sua primeira intervenção. A primeira fá-la a 1 de agosto de 1975. E é dura. Durante sete minutos, Sophia critica as decisões políticas tomadas após a revolução. “Desgraçadamente, dia após dia, a revolução tem estado a ser desvirtuada pelo abuso e pela avidez de poder das falsas vanguardas ideológicas. Apesar do descontentamento crescente evidente e justo do povo português, a revolução tem estado constantemente a ser liderada pelo maximalismo literato dos falsos intelectuais de Lisboa, pelo facciosismo dos inconscientes e dos loucos, e pelas estratégias dos oportunistas do marxismo pronto-a-vestir.” O Parlamento alvoraçou-se.
“Hoje, quando recordamos as intervenções de Sophia na Assembleia Constituinte, não há uma ruga, o que há é uma clareza, uma limpidez – o que é difícil nos discursos políticos, que muitas vezes perdem frescura, porque se tornam muito ligados ao quotidiano político. Sophia é uma afirmação de valores, é uma afirmação de princípios, sempre com uma qualidade literária única”, defende Guilherme d’Oliveira Martins.
Neste discurso, o primeiro, Sophia demonstrava já desencanto pela política. Ainda assim, envolveu-se diretamente na Comissão para a Redação do Preâmbulo da Constituição, presidindo-a. Manuel Alegre foi o redator do preâmbulo da Constituição. “Eu escrevi o preâmbulo. E lembro-me de que houve ali uma palavra ou outra que ela esteve a ver comigo, e ainda mexeu ali numa palavra ou outra. A preocupação com a língua era presente. Com a língua e com as ideias. Mas foi [deputada] naquele período muito turbulento. Afligi-me quando foi do cerco à [Assembleia] Constituinte, porque eu e o Mário Soares conseguimos sair, mas ela ficou. Ela era uma pessoa muito corajosa, uma falsa-frágil”, recorda Alegre.
A 12 de novembro de 1975, na sequência da discussão sobre o contrato coletivo de trabalho (exigiam-se aumentos salariais de 60%) na construção civil, centenas de trabalhadores cercariam a Assembleia. Alegre e Mário Soares, pressentindo o cerco, deixam o hemiciclo e apanham um táxi nos jardins de São Bento. Sophia e restantes deputados acabam sequestrados toda a noite de 12 para 13 de novembro. Muitos reclamam da escassez de comida, que esgotara no bar da Assembleia, do vexame daquele sequestro. De Sophia não se ouve reclamação. Os deputados acabariam libertados um por um, atravessando um corredor humano, entre gritos de “Fascistas!” e “Reacionários!”. Sophia, à saída, cruza as mãos sobre o peito e pergunta apenas: “Fascista? Eu?...”
Abandonaria o Parlamento aquando do fim da Constituinte. Porquê? “Quando estava na Assembleia tive uma experiência importante”, revelou numa entrevista em 1992. “Saí um dia mais cedo e atravessei o Bairro Alto a pé. Na rua havia um pequeno grupo de crianças a brincar na soleira de uma porta. E chamaram-me e perguntaram se eu era a Sophia de Mello Breyner Andresen. Eu disse que sim. Mas como é que elas sabiam? Elas responderam que a professora estava a ler uma história minha na aula e tinham visto um retrato meu. Fiquei a conversar com as crianças – e pensei, de repente, que escrever era a minha verdadeira participação política.”
E mais justificou, em 1989: “Eu nunca gostei de ser deputada, sempre achei que era uma coisa que não era para o meu género de trabalho, aquilo que eu poderia fazer. Custou-me horrorosamente, fez-me imenso mal à saúde. Eu sou muito irrequieta, quando escrevo ando sempre de um lado para o outro, mexo-me, vou ao jardim, abro uma porta, vou buscar um livro. E estar ali sentada a ouvir falar, falar, falar, era uma agonia. Senti-me muito mal no Parlamento. Depois acho que aquele tipo de discussão é para advogados. Eu às vezes penso como é que é possível que o mundo seja tão mal governado. É tudo advogados e economistas, pessoas que têm uma noção muito parcial da realidade muito desencarnada. Isso para mim era um combate quase impossível.”
Distancia-se da vida partidária. E recusa diversos cargos. É convidada por Soares para ser embaixadora em Paris, e recusa. Em 1978 é convidada para secretária de Estado da Cultura, e recusa. Este último convite teve a particularidade de ser endereçado a Sophia e a Francisco Sousa Tavares. Concordam que, a algum deles aceitar, que aceitasse Sophia. Mas com uma condição: que o filho Miguel Sousa Tavares fosse o seu chefe de gabinete. A substituição de António Barreto no Ministério da Agricultura acaba por ditar a recusa. “Oh Sophia, você não vai nada para a Cultura com esta gente, eles não sabem o que estão a fazer!”, atirou, irritado, o marido.
Numa carta a Jorge de Sena, Sophia explica-se de outra forma: “Da política nem falo. Ou melhor, falo. É uma política dominada pela exterioridade, pela vaidade e pela leviandade machista. Convidaram-me para ir para secretária de Estado da Cultura, mas não aceitei porque com o meu filho Xavier [que sofrera um acidente no começo da adolescência] a pedir uma atenção constante eu não teria a disponibilidade necessária. E também porque, dada a composição do resto do Ministério, eu encontraria grandes incompreensões que me paralisariam. O PS tem da cultura uma noção decorativa radicalmente burguesa. Além disso, detestaria ser uma espécie de ministro com tudo o que isso representa de burocracia e tarefas ocas. Graças a Deus sou mulher e, por isso, não sinto necessidade de triunfo na carreira. Aliás, penso que um artista não deve ser Governo mas, sim, influenciar os governantes.”
Novamente a convite de Mário Soares, então a cumprir o primeiro mandato enquanto chefe de Estado, em 1987 é nomeada chanceler das Ordens Honoríficas. Mas por lá permanece somente três anos.
“Ela afastou-se e ele respeitou isso. Ele gostaria de ter tido a Sophia sempre no Parlamento, porque era uma voz importante, uma mulher de cultura. Mas também percebeu que ela era sobretudo poeta. E respeitou isso. Mas ela tinha sempre a frontalidade de lhe dizer que não estava de acordo. Tinha essa relação muito próxima”, lembra Isabel Soares.
José Manuel dos Santos, antigo assessor cultural de Mário Soares, acrescenta: “Ela falava com ele como falava com um grande amigo. Ele era seu confidente, independentemente de ser primeiro-ministro ou Presidente da República. Se ela precisava do Mário Soares para a ajudar a resolver um problema, ela obviamente que telefonava. E para o Mário Soares a Sophia passava sempre à frente de tudo. Nunca houve entre eles uma sombra. Mas houve discordâncias, sim. Há, aliás, uma carta, uma pequena discordância, quando ela estava na Chancelaria das Ordens [Honoríficas], por um assunto que tinha a ver com uma condecoração, e a Sophia começa a carta ao Mário Soares dizendo: ‘Acho que a primeira exigência da amizade deve ser a clareza.’ E o Mário Soares imediatamente lhe escrevia ou telefonava a explicar-se ou a dizer que a Sophia não tinha razão.”
O administrador da Fundação EDP acredita que o afastamento de Sophia se deveu ao facto de “não ser mulher para fazer política no sentido partidário da palavra”. E explica: “Quando a pequena política partidária começou, ela desinteressou-se da política. Ela mantém toda a vida um olhar atentíssimo à política, há sinais disso ao longo de toda a sua obra, há sinais disso nas entrevistas, percebe-se que é atenta, mas é atenta à essência das coisas e às coisas essenciais. A partir do momento em que a liberdade estava conquistada, ela desinteressa-se dessa política do dia a dia. Mas mantém sempre uma grande intervenção. Ela, por exemplo, é mandatária, por Lisboa, da candidatura presidencial de Mário Soares, apoia o Jorge Sampaio também. Nos combates essenciais ela sabia de que lado estava. E dava a sua voz, o seu nome, o seu rosto e palavras às causas em que acreditava. E fez isto a vida toda. Até ao fim.”
É da poeta a célebre frase “A Poesia Está na Rua’, que surge numa poema dedicado aos militantes do PS e inspira mais tarde os cartazes de Vieira da Silva, e desfila já com a multidão no 1.º de Maio de 1974.
“A 25 de Abril a poesia estava na rua, mas tinha sido rapidamente empurrada para dentro de casa. No 25 de Abril há um momento poético extraordinário. Hoje em dia nós olhamos para trás e perguntamos a nós próprios se foi a nossa sede de uma ilusão que criou uma espécie de fantasmagoria. Talvez tivesse havido um momento em que, imagino, algo para toda a gente estava para além da política e que depois a política destroçou, a política tradicional. Creio que houve um estado de graça. Mas depois o pecado do poder destruiu esse estado de graça”, refere Sophia em entrevista em 1982. Pouco tempo antes, em 1977, publicou “O Nome das Coisas”, um livro de toada violenta contra a degradação da política e de um Abril que não se cumprira como esperava.
“O meu livro ‘O Nome das Coisas’ é um livro contra tudo, contra uma forma de linguagem muito demagógica, uma tentativa de procurar a verdade, uma verdade substantiva. Logo a seguir ao 25 de Abril perderam-se imensíssimas coisas. Não foi logo a seguir, primeiro houve uns dias de festa em que havia uma potencialidade enorme que foi estragada sobretudo pela demagogia. Dizia-se que foi a pressão da direita. É evidente que a direita se aproveitou dessa demagogia e da confusão gerada. Aquele livro é mais uma crítica de certos desmandos da esquerda, porque a direita, para mim, já estava muito ultrapassada naquela altura, embora haja uma nova direita, de outro género, uma direita que não se tornou democrática mas arranjou maneira de coabitar com a democracia, de se instalar nos desvãos da democracia”, explicou em 1989 a poeta.
Tão Grande Dor
Timor fragilíssimo e distanteLonge da política mas ainda politizada, Sophia abraça causas, sobretudo de Direitos Humanos. E abraçou como poucos a de Timor-Leste, sobretudo após o massacre de Santa Cruz, em 1991, que viu centenas de timorenses serem chacinados no cemitério de Díli. “Os direitos humanos, quando se chega a Timor, já não existem”, afirma Sophia numa entrevista de 1994.
“Timor? Além da consciência dela, havia ali a grande influência do seu amigo Ruy Cinatti [que nas décadas de 1940 e 1950 vivera em Timor, estabelecendo fortes laços com a população local; por decisão de Salazar, Cinatti é impedido de regressar a Timor a partir de 1966], que tinha de alguma forma enlouquecido – uma espécie de ‘loucura poética’ – e andava pelas ruas a distribuir poemas, perturbado com o que se estava a passar naquela terra e com aquele povo que ele amava. E a Sophia, de facto, mais uma vez, num momento decisivo, denunciou, chamou à atenção do mundo, e a voz dela ergue-se com aquelas palavras belíssimas que ela sabia escolher, em que a poesia e a política se juntavam para falar daquilo que são as grandes causas de uma e outra: a liberdade, a dignidade e a justiça”, explica José Manuel dos Santos.
Em 1999 Sophia ganha o Prémio Camões. No ano seguinte a saúde da poeta deteriora-se bastante, após sofrer dois acidentes vasculares cerebrais. Sophia morreu no Hospital Pulido Valente, em Lisboa, no dia 2 de julho de 2004. Uma década volvida, acontece a cerimónia de trasladação do seu corpo para o Panteão Nacional. Na Assembleia da República cabe a José Manuel dos Santos apresentar os argumentos a favor da trasladação. E a Assembleia da República aprova com unanimidade as honras de Panteão a Sophia, a 19 de fevereiro de 2014.
“Ela nunca fez o que não quis na vida. Disse sempre o que tinha a dizer e nunca teve medo, nem de viver, nem de falar, nem de escrever. Quando chegavam os grandes momentos, ou a hora da verdade, era como se ela, se a voz dela, crescesse. E ocupava a cena. Não acho que ela tivesse desilusão [pela política]; acho que ela tinha exigência, isso sim. Não era alguém que se afastasse com ar enjoado, como muitas vezes acontece, ou a achar ‘isto não é para mim’. Pelo contrário: era alguém que continuava a ter a sua exigência. E a dar voz pública à sua escolha. Obviamente que alguém que luta contra uma ditadura, que vive uma revolução como uma revelação, a seguir fica triste com alguns caminhos quando a política se começa a fazer, quando os partidos começam a governar. Há obviamente o embate com o real. Entristece-a muitas vezes que a política tenha de ser feita de forma condicionada, que não a deixam ser a política da justiça e da liberdade que ela desejava. Ela continua a fazer política, não precisando de a fazer nos partidos. Mas fazendo-a através do que escreve, do que diz e do que faz”, lembra José Manuel dos Santos.
Na conversa de 1986 com Eduardo Prado Coelho, Sophia refere – e é intemporal, hoje como em 1986 –, passando já o testemunho às gerações vindouras: “Às vezes quero escrever uma coisa e penso que já não é oportuno, já passou. E depois acontece que eu saio menos, os meus amigos – de toda a gente – estão menos motivados politicamente. Porquê? Esta é uma época em que os problemas são cada vez mais difíceis. Devia escrever-se muito mais sobre estas coisas, e deviam ser as pessoas mais jovens a fazê-lo: é a vez delas.”
Ouça também (aqui) a reportagem da jornalista Maria João Costa, com sonoplastia de André Peralta, a propósito do centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen.