É um puzzle com muitas peças, como lhe chamou o líder da Semapa, Pedro Queiroz Pereira. Muitas deixaram de encaixar. O ex-acionista da ES Control, de onde saiu em Novembro de 2013, apercebeu-se que o Grupo Espírito Santo (GES) tinha problemas “há muitos e muitos anos”.
Não haverá, no entanto, uma data ou um acontecimento responsável pela queda do império. Foram vários. De nenhum Zeinal Bava, figura que se tornou central no caso, se apercebeu. “Ninguém pensava que o BES podia falir”.
Mas se no mundo dos negócios até podia haver conversas em surdina nos corredores, há agora a certeza de que o Banco de Portugal sabia do caso pelo menos desde Outubro de 2013. Ou seja, quase um ano antes de o banco ser “resolvido”.
Uma carta do Banco de Portugal, dada a conhecer pelo “Expresso”, endereçada ao Espírito Santo Financial Group (ESFG) mostra que o governador está preocupado com a necessidade de reforço de capital, a falta de transparência, a exposição do ramo não financeiro do GES e o emaranhado de holdings em várias jurisdições, que tornava o controlo e a intervenção difíceis.
O GES ainda tenta tranquilizar o regulador, mas a troca de correspondência com o Banco de Portugal traz novas exigências. Cada vez maiores. Está tudo documentado, mas não evitou a hecatombe.
O que tornou isto possível?
Pedro Santos Guerreiro, director executivo do Expresso
A ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, na última passagem pela comissão de inquérito, deixou críticas com destinatário: “Houve erros de gestão muito graves. Erros de governance nas instituições. Da auditoria, que não terá visto o que devia. Se calhar as normas deviam ter outro tipo de exigências. Se calhar a supervisão deveria ter visto mais cedo.”
Houve relatos de supostas fugas de informação, de falta de informação a accionistas e de fraqueza perante o status quo.
Mas o episódio maior será, doravante, o papel comercial. O caso promete fazer o tema manter-se por muito tempo na mira dos média. Quem tem a responsabilidade de resolver o caso? Num jogo do empurra, Carlos Costa tem chutado a responsabilidade para Carlos Tavares, bola que o presidente da CMVM devolve de seguida.
Mas o que falhou para chegarmos aqui? Havia ou não meios para actuar? Há que dar mais poder aos reguladores?
Os reguladores fizeram tudo que podiam?
Miguel Tiago, PCP
A dimensão política é uma das zonas mais nebulosas de todo o caso BES. A tese do Governo é a de que nada sabia e que quando soube já era tarde de mais.
O Executivo de Passos Coelho garante que não sabia há muito tempo dos problemas que o banco atravessava e que não se envolveu na decisão de criar um “banco bom”, o Novo Banco, e um “mau”, o BES.
A versão governamental foi sendo contrariada por alguns relatos na comissão de inquérito. Destes, sobressaiu o do presidente do BPI, Fernando Ulrich. O gestor afirmou que avisou o ex-ministro das Finanças, Vítor Gaspar, dos problemas do GES e do BES. Estávamos "entre o final de Maio e o início de Junho de 2013".
O líder do BPI acusou ainda o Governo de andar a jogar a roleta russa com o sistema financeiro ao validar uma solução para o BES que compromete todo o universo bancário. O vice-primeiro ministro, Paulo Portas, contra-atacou: “Não terá andado o sistema financeiro a jogar à roleta com o contribuinte português?”
A outra pergunta que fica é: e os políticos deixaram?
Quem jogou à roleta russa com quem?
Mariana Mortágua, BE
Serão 2.508 as pessoas que, no final de Junho de 2014, teriam 1.800 milhões de euros aplicados em papel comercial do GES.
De Norte a Sul, os lesados têm sacudido o país com protestos e invasões a dependências do Novo Banco. Muitos eram clientes com aplicações de perfil conservador cujo dinheiro foi aplicado em empresas do universo GES sem o saberem. Houve até manifestações em frente à casa do governador do BdP.
Carlos Costa lamentou-se aos deputados da fúria popular: "Eu fui apelidado este fim-de-semana de gatuno. Eu não roubei nada a ninguém”.
O ex-administrador do BES Jorge Martins admitiu, na comissão de inquérito parlamentar, que mesmo depois de ser dada ordem para travar estas operações, a 14 de Fevereiro de 2014, o BES ainda comercializou papel comercial de empresas do GES.
O caso está longe do final. Há muitas perguntas sem resposta. Onde está a provisão que o Banco de Portugal exigiu ao BES? Os clientes serão ou não ressarcidos? Quais? Com que critérios?
“O leopardo quando morre deixa a sua pele e um homem quando morre deixa a sua reputação.” Ricardo Salgado, ex-presidente do BES, 09-12-2014 | “Devo dizer que o dr. Ricardo Salgado tem um problema: não lida maravilhosamente com a verdade. (...) Sinceramente, que o dr. Ricardo Salgado não soubesse nada, acho impossível, completamente impossível.” Pedro Queiroz Pereira, presidente da Semapa, 10-12-2014 | “Há os 'donos disto tudo', mas eu não era o faz tudo.” Amílcar Morais Pires, ex-director financeiro do BES, 11-12-2014 | “Reparei que alguns dos senhores [jornalistas] e também alguns políticos disseram e escreveram que o Presidente da República fez alguma declaração sobre o BES. É mentira, é mentira.” Cavaco Silva, Presidente da República, 30-01-2015 | “Isto que aconteceu foi o pior que podia acontecer à minha carreira. Isto liquidou a minha carreira, destruiu a minha carreira. E sinto que fui injustiçado.” Henrique Granadeiro, ex-presidente da PT SGPS, 04-03-2015 |
“Fui apelidado este fim-de-semana de gatuno. Eu não roubei nada a ninguém.” Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, 24-03-2015 | “(…) A impensável e deplorável crise do BES, contaminado pelo Grupo Espírito Santo, e a necessidade de intervenção pelo Banco de Portugal. Os efeitos imediatos da crise do BES traduziram-se em danos de imagem e reputacionais de grande impacto para o sector bancário como para o próprio país.” Faria de Oliveira, presidente da Associação Portuguesa de Bancos, 10-03-2015 | “Em sã consciência eu não sabia [do investimento de 900 milhões de euros da PT em dívida do GES.” Zeinal Bava, ex- CEO da PT, 26-02-2015 | “O Banco de Portugal, para implementar e avançar com a decisão [resolução ao BES], precisou da colaboração do Governo, para criar o quadro jurídico necessário para poder intervir e fazer o que fez.” Teixeira dos Santos, antigo ministro das Finanças, 19-11-2014 | "É mais censurado alguém roubar uma carteira do que fazer uma manipulação de mercado ou abuso de informação privilegiada." Carlos Tavares, presidente da CMVM, 14-11-2014 |
Quem paga a factura do papel comercial?
Cecília Meireles, CDS-PP
Foi inovadora e por isso arrojada. Mas, para o governador do Banco de Portugal, foi uma decisão quase sem alternativa: ou era a divisão do BES em dois ou a liquidação.
A comissão tentou fazer vários testes de paternidade à medida, mas ninguém conseguiu que Carlos Costa ou a ministra das Finanças saíssem do discurso oficial: foi o regulador a pensar, elaborar e executar a decisão. Sozinho, sem o Governo. Ainda assim, a ideia não colheu entre os partidos da oposição.
A decisão tem, contudo, ainda muitas nuvens no horizonte. Os investidores que moveram acções de litigância multiplicaram-se. Esse risco pode reflectir-se no preço de venda do Novo Banco. A pergunta que emerge: como é que o risco de processos judiciais de investidores furiosos se reflectirá no valor de venda do Novo Banco?
Durante muito tempo disse-se que seria uma medida sem custos para os contribuintes. O tempo mostraria que pode não ser assim.
O Estado transferiu 4,9 mil milhões de euros para o Fundo de Resolução. É um empréstimo que o sistema financeiro terá de pagar se o valor de venda do Novo Banco for inferior a 4,9 mil milhões. Mas entre os bancos está o banco público, a Caixa Geral de Depósitos, que poderá ter de arcar com parte dos potenciais prejuízos. Ou seja, os contribuintes podem ser chamados a pagar.
Sobram as perguntas: que factura caberá aos bancos? Qual será o peso do risco de litigância no preço final? E haverá ou não custos para os contribuintes em todo este processo?
A medida de resolução era a única possível?
Pedro Nuno Santos, PS
Qual é o montante da dívida do Grupo Espírito Santo? Ninguém sabe. Nem o regulador. Carlos Costa disse, durante a comissão parlamentar, que "pode ser muito superior ao que se possa pensar. Por isso é que é preciso ter muito cuidado [com o papel comercial]".
Segundo Carlos Costa, a interligação entre as empresas do GES e a circulação de dívida que ocorria no seu seio pode ser algo "muito mais complexo e muito mais exigente do que estamos a imaginar".
A circulação de dívida entre o sector financeiro e não financeiro, em jurisdições opacas, foi por muitos sinalizado como um autêntico buraco negro nas transacções financeiras. Tanto que Carlos Costa defendeu uma medida drástica: uma alteração legislativa que proíba que um banco integre um grupo não financeiro, como era o caso do BES e do GES, para evitar contaminações.
Qual o papel das empresas do GES na queda do BES?
Duarte Pacheco, PSD
“Eu não sabia", "eu nunca imaginei", "não me lembro", "nunca tive qualquer informação", "não sei", "não acompanhei", "nunca supus", "nunca participei", "não lhe sei dizer", "nunca participei", "não estava no meu âmbito", "nunca tratei", "não era da minha competência ou responsabilidade", "não sou um financeiro".
Estas foram só algumas das dezenas de formulações negativas com que ao longo de mais de quatro horas, Manuel Fernando Espírito Santo Silva, o gestor que durante uma década – e até ao colapso final – esteve no topo da estrutura não financeira do grupo Espírito Santo, brindou os deputados da comissão de inquérito.
A estratégia, ou simples falta de memória, fez escola. O mais emblemático dos casos foi o do ex-director executivo da PT, Zeinal Bava, sem qualquer recordação do investimento de 80 a 90% da tesouraria da Portugal Telecom no GES - cerca de 900 milhões de euros.
“Em sã consciência não sabia das aplicações, nem devia saber”. A tirada levou à resposta pronta da deputada bloquista Mariana Mortágua: "É um bocadinho amadorismo para quem ganhou tantos prémios".
A passagem do ex-golden boy da gestão portuguesa pela comissão de inquérito, essa, não saiu da memória de todos que assistiram. E até criou um neologismo para a posteridade: uma “bava”, um esquecimento útil.
Números Banco Mau / Banco Bom
O que se passou com a memória dos nossos gestores de elite?
Paulo Pena, jornalista do Público
Factos, factos e mais factos. E uma excepção para a política sempre que o tema foi a medida de resolução aplicada ao BES e o grau de conhecimento e participação que o Governo teve na decisão.
Com muitos deputados juristas e num tema em que, apesar de ter uma dose de política, os condimentos principais eram técnicos, o Parlamento transformou-se em alguns casos numa sala de audiências de um tribunal.
No início foram chamadas 138 pessoas a depor; no fim foram “apenas” 55, a que acrescem 16 depoimentos escritos.
Esta foi também uma comissão vista por milhares de pessoas em directo. A ARTV teve 241 horas de emissão em directo (equivalente a dez dias). Os canais de notícias dedicaram horas e horas seguidas às principais figuras do caso.
Mas houve também o inglês, as siglas e a linguagem excessivamente técnica que tornaram, em alguns casos, a percepção do que se passava tão complicada para um leigo como para um surdo seguir um programa na televisão sem linguagem gestual.
O que correu bem na comissão? E mal?
Fernando Negrão, presidente da comissão
Em directo, a comissão BES deu ao país uma fotografia da elite económica portuguesa. Num país cada vez mais desconfiado em relação a quem o lidera, a foto ficou ainda mais desfocada.
Mas fomos também confrontados com a existência de um sistema financeiro em que a circulação de dinheiro passa por jurisdições opacas, no qual a regulação (Banco de Portugal e CMVM) têm poucos meios para evitar e prevenir que casos destes se reproduzam.
O BES teve danos colaterais gigantes. A Portugal Telecom foi o maior. As relações de Henrique Granadeiro, Zeinal Bava e Ricardo Salgado também tiveram desenvolvimentos públicos.
Juntando as peças do puzzle, ficou-se a saber quem sabia do quê e quando. Mas a PT como a conhecemos, essa, só nos livros de História poderemos agora saber como já foi.
O que ficámos a saber com a comissão?
Graça Franco, directora de Informação da Renascença
Já estávamos escaldados com o passado, o BPN, o BPP. Mas não se evitou o colapso do BES. Será que o BES vai evitar um novo caso?
Da comissão espera-se que surjam alterações legislativas. Serão suficientes? Dois dos principais concorrentes à compra do Novo Banco, os chineses, são também conglomerados.
E como é que este caso vai influenciar a relação dos portugueses com os seus bancos?
A história do papel comercial demonstrou por A+B que a confiança, essencial em qualquer relação comercial, não é suficiente. É preciso mais.
A literacia financeira é um problema dos portugueses e que urge ultrapassar. Mas não muda de um dia para o outro.
Pode acontecer tudo de novo?
João Duque, economista
As conclusões da comissão de inquérito serão conhecidas a 29 de Abril, mas uma delas caiu na rua: a configuração do poder em Portugal já não será o mesmo. Saiu de jogo uma das principais peças: a família Espírito Santo. Mas como o poder tem horror ao vazio, a reconfiguração mais lenta ou mais rápida será inevitável.
Se politicamente o caso deverá ter consequências a breve prazo, as réplicas do desmoronamento deste império financeiro vão-se sentir nos próximos anos em sucessivos casos judiciais.
Salgado sabe bem disso. Talvez por isso tenha dito aos deputados: "Só quero lutar pela minha honra e da minha família. Sei que os anos que me restam de vida serão passados nessa luta".
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