À Margem de Lisboa
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Como Alfama se está a mudar para Cacilhas

São praticamente vizinhanças inteiras que têm de atravessar o Tejo para encontrar uma casa que podem pagar. Apontam culpas ao turismo, que descaracteriza e encarece o seu bairro, Alfama. Regressar, garantem, “é impensável”. “Nem casas há!”

Tiago Palma (texto) e Joana Bourgard (fotos, vídeo)
 
 

No interior, exíguo, o relógio toca ruidoso a rebate, respira-se uma atmosfera de suor e de luta, ainda balançam sacos, mas o ringue, ao centro, logo em frente a um retrato de Amália, está vazio. Vazio o ringue e vazio o ginásio de Paulo. Volta e meia alguém espreitava na porta entreaberta do Grupo Desportivo Adicence, em Alfama, procurado-o como quem procura destreza no verbo resolver.

Paulo chegaria não tarda, gingante Rua de São Pedro acima, trazendo no largo porte e no rosto quase impassível uma certa pinta golpeada de quem foi boxeur. Sempre num tu-cá-tu-lá afável, gingão também aí, logo se predispõe a deambular pelos lugares onde cresceu, ruelas labirínticas e becos que luz pouco veem, lugares que não reconhece mais como seus. “É triste. A gente agora sai à rua e só ouve é falar em inglês, alemão, francês...”

Tem hoje 52 anos. Já não mora em Alfama. Foi dos primeiros, há já oito anos, a fazer uma “travessia”, no Tejo e na vida, para Cacilhas, em Almada, travessia que outros, hoje já uma dezena, replicaram, seguindo-o. “Às vezes até digo que só falta levar a marcha de Alfama para lá”, graceja.

Vivia com a mulher e dois filhos no Largo de Santo Estêvão, paredes-meias com a igreja, no alto de Alfama. Raramente regressa à velha casa. Evita. Mas volta agora e, no largo, revolve a memória, um tanto desconsolado, outro tanto conformado. “Agora, como se vê, o prédio está transformado em alojamento local. Eu morava ali em cima, no terceiro esquerdo. Só uma vizinha já velhota – vive aqui há quarenta-e-tal anos! –, a Adelaide, é que ainda cá mora, no rés-do-chão. É triste.”

Volta diariamente ao bairro. Para trabalhar no Adicence, volta. “Mas é sempre com alguma mágoa que regressamos às nossas casas, já de noite, sabendo que a nossa essência ficou em Alfama”, lamenta-se.

Alfama sempre foi para ele como família. “Passava os dias em casa de vizinhos. Não havia preocupação do 'onde é que está o meu filho?', porque a minha mãe sabia que estava seguro, ninguém saía dos meandros do bairro e toda a gente cuidava de toda a gente.” E quando os tempos são de inquietude, as famílias, não de sangue mas de bairro, entreajudam-se. “Fui talvez dos primeiros a ir para Cacilhas. Então, se vou para um sítio, se fazes parte desta nossa família, a tendência é dizeres-me: 'Eh pá, arranja-me lá qualquer coisa perto de ti'. E depois é o passa-a-palavra: primeiro vão uns, depois vão outros, arranjo-te casa, arranjas uma para uma amiga nossa…”

Assim foi, faz agora oito anos. E ainda assim é. “Ainda, ainda. Hoje de manhã um indivíduo meu amigo, o António, que há tempos foi morar para o Bairro Alto, perguntava-me se havia alguma casa do lado de lá [Almada]. O senhorio não vai prolongar o contrato de arrendamento com ele, porque aquele prédio vai ser transformado num hostel.”

 
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Foi principalmente o fim abrupto dos contratos de arrendamento, a transformação das casas em alojamento local, que propiciou o êxodo da população de Alfama para Cacilhas. “Isto começou a ser assim há cerca de cinco, seis anos. E foi-se agravando, agravando, agravando…” E garante: “No início, os aumentos foram progressivos. Depois, quando se começou a ver que isto era um diamante por lapidar para o turismo, começou a atingir máximos históricos. Se hoje em dia quisesse arrendar uma casa em Alfama por… [pausa] 600 euros, um T1, dificilmente conseguiria.”

Paulo é abordado à porta de um restaurante – na verdade, é abordado rua a rua, travessa a travessa, no passeio, às janelas. Na Rua de São Pedro, uma criança reconhece-o e tropegamente aproxima-se, arrisca o passo instável, arrisca a fala impercetível mas direcionada a ele.

– Filha, olha quem está aqui... – diz o pai, da mesma “criação” de Paulo (em Alfama não há gerações, há criações).

– Vai ser uma futura atleta minha! [Pausa] É isto que falta aqui e que já não há, porque se tem ido embora aos poucos… – atira Paulo, disfarçando sorridente uma indisfarçável lamentação.

 
 

A distância é só a de um cacilheiro. O desapego, impossível

 
 

Há oito anos, Raquel trocaria Alfama por Cacilhas, não por vontade sua, mas, sim, por desejar “uma vida melhor” para os filhos, de seis e doze anos. Tem hoje 31. “Quando temos filhos, procuramos estabilidade para eles, condições que não tínhamos. Fomos criados de outra maneira. Fui criada com o meu irmão, dividíamos o mesmo quarto, um quarto pequenino em Alfama. Queria que os meus filhos tivessem cada um o seu. Foi sobretudo isso que me levou a sair.”

 
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Sobretudo mas não somente. “Depois há o preço das casas: em Alfama estava a pagar 400 euros por uma casa onde só tinha um quarto, sem condições nenhumas. Os senhorios prometem-nos que fazem obras, mas não fazem. Só pintam a parede e, depois, acham que podem aumentar as rendas de 400 para 500. É impensável. Lisboa está caótica para viver. Nem casas há! Em Cacilhas fui pagar 300 – e é uma casa de três quartos, enorme, com marquise e um quintal.”

Pela manhã, cruza o Tejo. Porque a mãe e o pai vivem ainda em Alfama. Porque trabalha no lavadouro municipal, na Mouraria. “De barco são oito minutos. No Verão faz-se bem. Mas no Inverno, trazer os filhos à chuva, mais o frio, é horrível.” Hoje cruza-o por isso: a família e o emprego que tem. Antes não.

“A nossa vida é toda feita aqui. Trabalho aqui. Os miúdos estudam aqui. A casa praticamente serve como dormitório. Nós saímos às sete horas da manhã e voltamos a entrar às sete, oito da noite. [Longa pausa] Até há bem pouco tempo, servia a comida aos miúdos de manhã e saía de casa [em Cacilhas] mais cedo para tomar o pequeno-almoço no mesmo café, em Alfama, onde tomei a minha vida toda. Só agora é que consegui começar a desapegar-me, já não vou lá tanto como antes”, garante.

Ao contrário de outros, Raquel não descobre Cacilhas por amigos que chegaram primeiro, até porque foi “uma das primeiras” a chegar. Descobre-a pelo anterior senhorio.

“É curioso: o senhorio de Alfama é o mesmo senhorio em Cacilhas. É espanhol. E é talvez dos poucos que não abriu alojamento local, não tem hostels, e mantém rendas acessíveis. Depois vieram mais famílias de Alfama. Hoje são oito. Oito, nove. A situação em Alfama estava cada vez pior, alguns não tinham opção e saíram, outros quiseram sair por vontade própria, e estamos todos a viver na mesma rua. E acaba por haver em Cacilhas um bocadinho de Alfama por isso.”

“Por isso”, não estranhou a travessia; mas Cacilhas estranhou-a, estranhou-lhe um hábito de Alfama. E recorda: “Lembro-me que quando me mudei para Cacilhas era Verão. E no Verão, em Alfama, nós estávamos habituados a ficar sentados à porta. Lembro-me de me vir sentar à porta quando me mudei e as pessoas olhavam-me com aquele ar de ‘esta senhora não está bem’. [Risos] E estava só a fumar um cigarro. São hábitos de bairro que críamos. São pequenas coisas, mínimas aos outros, que a nós nos sabem bem”.

 
 

“Ginjinha? Very good, very good!”

 
 

É outubro no Chafariz de Dentro, em Alfama, e pouco passa da hora de almoço. Não há nas esplanadas uma só cadeira vaga – ocupam-nas turistas, só. Outros há, turistas, sempre turistas, que o cruzam, de olhos na objetiva e objetiva na traça e na gente, e a gente são as vendedoras de ginjinha – outrora foram-no de peixe – que os abordam, “Ginjinha?”, quase travam ou travam mesmo, “Very good!”, para que a degustem, “Só two euros…”, em copinhos comestíveis de chocolate.

 
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Mesmo em frente da banca de Arminda, 77 anos, de estrepitosa saia “nazarena” e uma mise irrepreensível, ergue-se, com pompa, um cenário de conferência de imprensa. Ergue-se e recolhe-se, para se reerguer de novo à frente, à sombra, enquanto se aguarda pela chegada do “presidente”. “O Marcelo?”, questiona Arminda, intrigada. “É o [Fernando] Medina”, respondem.

O presidente da Câmara de Lisboa escolhera Alfama e o Chafariz de Dentro para apresentar uma nova lei, que havia entrado em vigor dias antes e suspende provisoriamente o registo de Alojamento Local em vários bairros de Lisboa: Alfama, Bairro Alto, Bica, Castelo, Madragoa, Mouraria, Príncipe Real e Santa Catarina.

Antes mesmo de se fazer ouvir o autarca lisboeta, Arminda não tem dúvidas: “Enquanto os senhorios alugavam casas aos estrangeiros – e a mim os estrangeiros aqui não estorvam nada! – mas ainda havia casas vagas, tudo muito bem. Agora, a partir do momento em que puseram gente na rua só para alugar aquilo aos estrangeiros, aí já não, não concordo. Tenho uma filha, com 59 anos, que em julho do ano que vem tem de sair: o prédio foi todo vendido para alugar a estrangeiros.”

Nasceu no Beco da Cardosa “a vinte e três do quatro de mil nove e quarenta e um”. Vive hoje, e há 45 anos, no Beco do Mexias. “Sair? Morria. Há pessoas para quem tirá-las do bairro é como matá-las. Há pessoas que até já morreram com o desgosto.”

Medina chega e discursa, envolto por jornalistas, câmaras e microfones, assessores, muitos, e curiosos, poucos. Promete que com este novo regulamento “queremos ter freguesias mais equilibradas, que não sejam bairros só para os turistas verem”.

Mesmo reconhecendo o impacto negativo que o crescimento, galopante e desregulado, do alojamento local representou, o presidente da Câmara de Lisboa garante que a criação de novos alojamentos é “desejável” em algumas zonas da cidade. “Também não queremos perder o impulso que trouxe na reabilitação de prédios – e zonas – que estavam devolutos. Neste caso, há toda a vantagem em que o imóvel seja utilizado para este fim. É uma boa decisão, que queremos encorajar.”

Glória, 84 anos, não prestou atenção a Medina. Escolheu a sombra e sentar-se. Mas vai comentando – ou discutindo, obstinadas – a problemática do alojamento com Olga, mais nova, de 70, uma vendedora de ginjinha do largo. O mote, é Glória a dá-lo.

– Fui um mês para Cacilhas quando casei e voltei. Hoje há muita gente a ir para lá... Porquê? Então, porque há falta de casas. É preciso mais casinhas para as pessoas que moravam aqui tornarem a vir.

– Aqui não houve muitas a sair, oh Glória! Desculpa lá...

– Mas ainda houve algumas, ali na Rua de São Miguel.

– Não podemos exagerar...

– Está bem... mas...

– Aqui houve muitas que quiseram dinheiro e, a troco de dinheiro, foram-se embora...

– Pois...

– É diferente do que pô-las na rua!

– Pois.

– A gente temos que ser sérias: saíram porque quiseram guitinho!

– Algumas sim...

– Ah, pois... Agora é impossível arranjarem aqui casas, porque são caras.

– É muuuuuito caro! Aqui já não se arranja uma casa por um conto de reis.

– Ah pois não!

– É assim…

– Tu tens aqui na Rua de São Pedro três, TRÊS!, prédios [camarários] onde começaram a fazer obras e pararam. Porquê?! Enquanto andam a fazer jardins, que acabem mas é as casas para alugar às pessoas! [A minha cunhada quis e não teve…] Eu não estou a falar da tua cunhada! A tua cunhada não era de Alfama!

– Quem quis vir foi a Fernanda do Lola.

– Foi a única! A Noémia não quis vir... Oh! Falam, falam, falam, mas dizer a verdade não dizem. E os turistas, a mim, não incomodam. Venham mais, para me comprar a ginjinha. Preciso de ganhar dinheiro. Não é? Oh pá!

 
 

“O mal que fizeram a Alfama não tem volta”

 
 

Alfama, Baixa, Castelo, Chiado e Mouraria. Poucos bairros em Lisboa sofreram tanta desertificação nos últimos anos como estes – por oposição, neles aumentaria mais e mais o alojamento local. Todos pertencem à mesma freguesia: Santa Maria Maior.

À Renascença, o socialista que a ela preside, Miguel Coelho, garante que as medidas que agora vêm, “vêm tarde”, depois de a freguesia ter perdido “15 a 17 por cento” da população nos últimos três anos.

“Tenho vindo a chamar a atenção para este problema há três anos. Este território suscitou prematuramente a cobiça de muitos investidores. Se esta lei que foi aprovada na Assembleia da República tivesse sido aprovada há… [pausa] dois anos, teria evitado muito sofrimento e teria evitado, de certa forma, alguma desertificação acentuada que temos.”

 
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Miguel Coelho reconhece na presente desertificação semelhanças com o passado. Mas a razão da ida não é a mesma do passado. É oposta: a qualidade de vida não aumentou; retraiu. E critica, Miguel Coelho, o anterior Governo PSD-CDS. “Na década de 1970… 1970, 1980… sobretudo a última, há muita gente que sai voluntariamente. Sobretudo jovens. Porquê? Porque houve um progresso no seu nível de vida. O que acontece hoje é que as pessoas que estão a sair, estão a ser obrigadas a sair. Saem porque há um apetite económico muito grande pelo bairro [Alfama]. Saem porque havia uma lei das rendas – conhecida como ‘lei Cristas’ – que era uma excelente ferramenta para correrem com elas. Era uma lei injusta e desumana, que foi criada para favorecer apenas um dos lados, neste caso o lado dos proprietários e dos senhorios.”

Apesar de “tardia”, a nova lei do alojamento local é “útil”. “Porque ainda sobram pessoas. E, com esta lei, quando estiver efetivamente em prática, naturalmente os fatores que contribuíram para que pessoas fossem empurradas para fora, diminuem ou são difíceis de concretizar. A espectativa que eu tenho é que vai salvaguardar o direito à habitação e à permanência de pessoas que sempre viveram nos bairros. Vai evitar uma consumação da tragédia final”, afirma Miguel Coelho, esperançoso.

Enquanto este acompanha Fernando Medina no Chafariz de Dentro, um pouco mais acima, no Largo da Palmeira, Lurdes Pinheiro, que durante quatro mandatos foi sucessivamente eleita presidente da Junta de Freguesia de Santo Estêvão, vai recolhendo assinaturas para impedir, em definitivo, a construção, ali, na Palmeira, do Museu Judaico de Lisboa. Uma construção que foi suspensa em junho pelo Tribunal Central Administrativo do Sul, que aceitou a providência cautelar interposta precisamente por Lurdes Pinheiro, hoje Presidente da Associação do Património e População de Alfama.

A construção do Museu Judaico é uma iniciativa da câmara, da Associação de Turismo e da Comunidade Israelita de Lisboa. A escolha do Largo da Palmeira, ou de São Miguel, para o erigir deveu-se ao facto de este ser um “local simbólico” para o judaísmo português, já que lá perto existiu a Judiaria de Alfama. O museu foi anunciado publicamente em setembro de 2016, numa cerimónia onde Fernando Medina garantiu a abertura do museu para 2017. Demolições houve entretanto. E população realojada noutros bairros.

“Nós entendemos, já que a Câmara de Lisboa se preocupa tanto com a questão da perda de moradores no bairro, que tem aqui uma boa oportunidade para mostrar que sabe agir de boa fé. É preciso que, em vez de construir o Museu Judaico neste local, se construa noutro lado em Alfama, e aqui construam habitações. Os prédios demolidos [para a construção] eram prédios municipais. As pessoas que viviam aqui, foram realojadas longe, em Marvila. Muitas acreditavam que regressariam e nunca regressaram. E agora, como isto está, não vão regressar da maneira nenhuma”, aponta a antiga presidente Junta de Freguesia de Santo Estêvão.

 
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Sobre a lei que Medina apresentava no Chafariz de Dentro, Lurdes Pinheiro não espera melhorias, porque “o mal que fizeram a Alfama não tem volta”.

“Ainda hoje fui ao Google ver o mapa de Alfama. Uma coisa é a gente ouvir dizer, outra coisa é a gente ver. Então, vi sinalizado o alojamento local. E digo-lhe: até fiquei doente! [Suspiro] Os prédios todos que estão a ser recuperados vão continuar a ser para turismo. Quem compra prédios inteiros não compra para ter prejuízo. Destruir é rápido, recuperar é que é difícil. No entanto, com alguma legislação e cuidado, com a habitação pública que é necessária, é possível termos outras pessoas a povoar Alfama, porque o que falta ao bairro é ter pessoas a viver nele.”

Prossegue a recolha de assinaturas. E ninguém escapou à banca improvisada no largo. “Vem cá, vem cá... Já assinaste? Já?!” Trata o bairro por tu e por tu o bairro a trata. E garante-nos que, antes de recorrer à junta, é à ex-presidente comunista de Santo Estêvão que a população recorre quando há despejos ou ameaças de despejos. E recorrem sobretudo idosos.

“Quando sai a lei do arrendamento urbano, os inquilinos começaram logo a receber cartas dos senhorios a dizer que os contratos terminavam logo naquele ano ou no seguinte. Mas depois há outro problema, sobretudo entre pessoas de idade: recebem as cartas, não as leem ou não as percebem, ou então acreditam muito na palavra dos senhorios – que passam lá e dizem para ‘não ligarem’ à carta. Depois, quando veem que a carta é para aumentar a renda para 400, 500 ou 600 euros, entram em pânico – isto são idosos que têm, no melhor dos casos, reformas de 300 ou 400 euros”, denuncia a presidente da Associação do Património e População de Alfama.

 
 

…e desabafas num fado, a razão do teu sofrer

 
 

Mais taxativo não pode ser: não regressa. Paulo vive hoje no Feijó, também em Almada. “Onde vivo, adaptei-me. E tempo vai passando, não é? [Pausa] A gente, conhecendo o bairro como está agora e como era antigamente, tem a sensação que já não é a este lugar que pertence.”

Raquel também sente o mesmo, que é de Alfama “apátrida”. “Hoje já não tem o espírito bairrista. As pessoas mais idosas falecem, é a vida, e quem é novo, como eu, sai, vai embora. Então, perdeu-se o espírito. Acredito que mais uns… cinco, seis anos, os turistas vêm a Alfama e não têm nada para ver aqui. Mercearias tradicionais? Já não há. Aqueles restaurantes com a comidinha caseira? Já não há. O que há são casas de fados e tapas. É o que há. Hoje, Alfama já não é Alfama.”

Paulo escolheu viver “à margem” de Alfama. Mas outros há que, tendo a oportunidade, regressariam. “Regressariam, regressariam. É claro que aqueles que partiram, partiram sempre com aquele sentimento guardado de regressar um dia. Se houvesse uma segunda oportunidade para voltar a Alfama, estou convencido de que a maioria voltaria.” E é possível? “O que eu penso é que isto do turismo obedece a ciclos. E penso que não poderá haver mais aumentos de preços. Isto nos próximos anos é capaz de estagnar um bocado e talvez aí as pessoas voltem.”

Raquel pensa nisso, voltar. Ainda pensa. Até porque em breve poderá ter que mudar-se.

“Cacilhas ainda tem o café de bairro, o talho, a mercearia de esquina, e lembra-me Alfama. Mas não é só isso que lembra Alfama: hoje em dia também está a ser afetada pelo turismo – tem cada vez mais cada vez mais hostels. E começaram a subir os preços das casas, obviamente: casas que tinham rendas de 300 euros, hoje estão a 500 ou mais. Alfama? Voltava. Mas também não quero acordar logo às seis da manhã com os ‘trolley’ a arrastar na calçada. [Risos] Voltava, mas penso que é mesmo impossível. Quero ter uma casa só minha, comprar mesmo, mas comprar em Lisboa está fora de questão: com o dinheiro que gastaria numa casa mínima em Lisboa, consigo uma vivenda aqui.”

Fernando Maurício deixou-nos faz já 18 anos. Falar dele é falar de um epíteto seu: rei. Da Mouraria, nascido no “coração” que é a Rua do Capelão, cantaria Alfama como se dela fosse de berço. A versos tantos, na “Igreja de Santo Estevão”, canta, quase clama, um “milagre sagrado” para voltarem àquele cruzeiro “esses fadistas de fama que sabem cantar o fado”. Noutro fado, “Alfama”, ouve-se dele, Maurício, sobre um lugar que é “sacrário de tradições”: “Quando tens uma tristeza no coração magoado, cantando a sabes dizer / O teu fado é uma reza, e desabafas num fado, a razão do teu sofrer”.

Em Alfama muito mudou. Talvez demais. Resta ainda fado. E fadistas que hoje vão cantando (sobretudo) para quem lhes desconhece a fala.

“Fado? Eu praticamente nasci aqui no Beco do Espírito Santo, porra!, ali mesmo por baixo fica a Parreirinha de Alfama. A partir das cinco horas e daí em diante, até já ser de madrugada, era fado a toda a hora. Se canto? Eh pá… como amador. De vez em quando ainda canto por brincadeira, essencialmente se tiver assim uma Galitos do Alentejo ou uma Reguengos de Monsaraz à frente”, atira Paulo, que, deambulada Alfama e a conversa, reentraria no Adicence.

 

Dezembro de 2018 – © Renascença

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