19 ABRIL, 2022

Ser presidente da CNPD deve ser “das atividades mais frustrantes no domínio da ação pública”

No último ano à frente da CNPD, Filipa Calvão deixa recados à tutela - como o desejo de poder ir ao mercado contratar juristas - e fala da “angústia” de trabalhar sem meios.

Artigo da série

19 ABRIL, 2022

Ser presidente da CNPD deve ser “das atividades mais frustrantes no domínio da ação pública”

No último ano à frente da CNPD, Filipa Calvão deixa recados à tutela - como o desejo de poder ir ao mercado contratar juristas - e fala da “angústia” de trabalhar sem meios.

Artigo da série

Por Inês Rocha (Jornalista), Joana Gonçalves (Fotografia e vídeo)

19 abril, 2022

  1. O grande “desejo” da CNPD: “ir para o mercado contratar”
  2. CNPD “não precisa de coimas para sobreviver”. Mas também não pode gastar o que queria
  3. Incapacidade de dar resposta às pessoas “é de facto angustiante”

A alguns meses de terminar o mandato à frente da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), Filipa Calvão assume que a intervenção da comissão em termos sancionatórios não tem sido a mais forte.

Nos últimos quatro anos, entre 2018 e 2021, a CNPD aplicou um total de 181 coimas, no valor de 2,63 milhões de euros - os números englobam todas as coimas, tanto ao abrigo do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) como de outras legislações.

Em 2020, quando começou a pandemia, o número de coimas aplicadas foi particularmente baixo - apenas 15, nenhuma das quais ao abrigo do RGPD. Já em 2021, a CNPD aplicou 60 coimas, 13 das quais ao abrigo da legislação europeia.

“Gostaria que fosse um sinal de que as organizações públicas e privadas estão a cumprir muito bem a lei, mas não creio que seja esse o sinal”, diz à Renascença. “É de facto um problema de falta de meios, de falta de capacidade da CNPD para estar em todo o lado”, admite.

Averiguações e coimas aplicadas pela CNPD nos últimos quatro anos

Se olharmos apenas para o valor das coimas aplicadas no âmbito do RGPD e o compararmos com os restantes países da União Europeia, de acordo com valores de um relatório da sociedade de advogados DLA Piper, Portugal surge a meio da tabela, com 1,7 milhões de euros cobrados em sanções.

Portugal aparece a meio da tabela no que toca a coimas cobradas ao abrigo do RGPD (ao valor total retiramos 400 mil euros, o valor da coima inicial ao hospital do Barreiro, perdoada devido à pandemia)

Portugal subiu para o meio da tabela europeia em 2021, ano em que a CNPD aplicou coimas no valor de 1,32 milhões de euros, ao abrigo do RGPD. A maior coima foi aplicada à Câmara Municipal de Lisboa, em dezembro de 2021, no valor de 1,25 milhões de euros, pelo caso “Russiagate”.

Antes, entre 2018 e 2020, tinham sido aplicadas em Portugal, segundo os relatórios de atividades da CNPD, sanções de 810 mil euros. Destes 810 mil, apenas 410 mil euros terão sido efetivamente cobrados – a segunda maior coima registada em Portugal, aplicada em 2018 ao hospital do Barreiro, no valor de 400 mil euros e depois revista para 380 mil euros, acabou por não ser cobrada, devido à pandemia.

Maior coima de proteção de dados em Portugal perdoada ao Hospital do Barreiro, devido à pandemia

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“O nosso grande desejo é poder ir para o mercado e contratar trabalhadores no mercado. Sempre com o problema da competitividade, não temos os mesmos vencimentos que empresas privadas eventualmente possam oferecer.” — Filipa Calvão, presidente da Comissão Nacional de Proteção de Dados

O grande “desejo” da CNPD: “ir para o mercado contratar”

O ano de 2021 foi mais forte do que os dois anteriores, tanto a nível de processos de averiguação abertos como a nível de coimas. Neste ano, a comissão aplicou 60 coimas, no valor de 1,5 milhões de euros.

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A presidente da CNPD explica estes números com uma mudança nos recursos humanos da instituição: no último ano, conseguiu finalmente reforçar os quadros a nível de informáticos, o que permitiu um reforço da atividade inspetiva, mas continua a precisar de juristas - pelo menos o “dobro” dos cinco que tem atualmente.

Para isso, o grande “desejo” da CNPD é “poder ir para o mercado e contratar trabalhadores no mercado”. “Sempre com o problema da competitividade, não temos os mesmos vencimentos que empresas privadas eventualmente possam oferecer”, ressalva.

“O maior problema que temos é que o regime regra da administração pública é de contratação dentro administração pública, ou seja, não aumentar o número de funcionários públicos e procurar encontrar, dentro do regime de mobilidade da Administração Pública, trabalhadores para as funções noutros serviços. E, se nalgumas funções isso é possível, como no trabalho administrativo, já é mais difícil para juristas e para informáticos”, explica.

CNPD “não precisa de coimas para sobreviver”. Mas também não pode gastar o que queria

Questionada se a falta de atividade sancionatória não prejudica também a entidade em termos financeiros, já que 40% do valor das coimas ao abrigo do RGPD são direcionadas para a comissão, Filipa Calvão diz que a CNPD “não precisa de coimas para sobreviver”.

Na verdade, a questão não é falta de dinheiro. A comissão tem ainda cerca de 6 milhões de euros disponíveis, “receitas sólidas de anos passados que não gastávamos e que vamos acumulando”.

O problema são os “limites de despesa pelo orçamento, a que acrescem as cativações, que todos os anos os governos fazem sobre esse orçamento inicialmente pensado, o que faz com que nós não possamos gastar aquilo que temos connosco e que tínhamos pensado gastar”, explica a responsável.

Isto acontece “para controlo do défice, que se compreende, mas em todo o caso há algumas limitações que nos abafam, em termos de atividade”.

“Sobretudo na parte da sensibilização e da divulgação junto da população, temos às vezes planos e ideias que seria interessante executar, mas que implica despesa pública e portanto acabamos por não avançar para essas soluções”, admite.

“A falta de meios, a incapacidade de dar resposta em tempo útil às pessoas que nos procuram, que precisam de ser protegidas, é de facto angustiante. Esta incapacidade tem que ser trabalhada pelo Estado, em sentido amplo, porque não adianta criarmos entidades administrativas independentes para o exercício de funções que são de tutela, de direitos fundamentais, se não lhes dermos meios.” — Filipa Calvão, presidente da Comissão Nacional de Proteção de Dados

Incapacidade de dar resposta às pessoas “é de facto angustiante”

Filipa Calvão foi nomeada presidente da CNPD em maio de 2012. A nomeação para o segundo mandato só aconteceu a novembro de 2017, pelo que deverá terminar o segundo mandato em novembro deste ano.

Ainda há mais sete meses de trabalho pela frente, mas Filipa Calvão já começa a fazer balanços. A professora universitária descreve a última década como “muito interessante, desafiadora”, embora diga “já chega”.

“Gostei muito de conhecer esta instituição, de trabalhar nela, das pessoas que aqui encontrei e daquilo que aprendi em termos de proteção de dados, direitos fundamentais e tecnologia, aprendi muito tecnologia nestes quase 10 anos”, conta à Renascença.

Já em termos “de organização, e também de alguma forma pessoais”, Filipa Calvão afirma que “claramente esta atividade é das atividades mais frustrantes que deve haver no domínio da ação pública”.

Porque a falta de meios, a incapacidade de dar resposta em tempo útil às pessoas que nos procuram, que precisam de ser protegidas, é de facto angustiante. Esta incapacidade tem que ser trabalhada pelo Estado, em sentido amplo, porque não adianta criarmos entidades administrativas independentes para o exercício de funções que são de tutela, de direitos fundamentais, se não lhes dermos meios”.

“Isso não adianta nada, é vazio, é pô-las com uma aparência de função que depois não conseguem cumprir. E portanto esta frustração de não conseguirmos acudir sempre, no momento certo, a toda a gente que precisa da nossa intervenção para proteger os seus direitos é de facto das coisas que mais marca, eu diria, esta última década”.

Ainda assim, assinala também “avanços importantes” no seu mandato.

“Há hoje muito mais atenção à matéria de proteção de dados do que havia há alguns anos, para o que contribuiu muito também a alteração do regime jurídico de proteção de dados. Mas há hoje muito mais atenção quanto à ideia de que é preciso proteger de facto as bases de dados e sistemas de informação em geral”.

“Infelizmente, às vezes, à custa de grandes desastres dentro das organizações e de grandes consequências práticas na vida das pessoas, por essa exposição de informação relativa a cada um deles”.

Ao próximo presidente da comissão, não deixa recomendações, a não ser “coragem”.

“Seguramente que será que será alguém que sabe bem que o que vai fazer e que sei que vai executar esse mandato com muita muita força.”

Ser presidente da CNPD deve ser “das atividades mais frustrantes no domínio da ação pública”