Há dez anos as barracas de madeira ficaram para trás num bairro que de "esperança" tinha o nome. À espera estavam 50 casas. Com telhados, com paredes e até com casas de banho. Trezentos ciganos acreditaram na promessa de um futuro melhor. Mais digno. Beja e o país não podiam mais ver um bairro de lata e olhar para o lado. O balão das expectativas encheu-se, mas rapidamente se esvaziou.
Os discursos oficiais anunciaram o fim dos estereótipos, ligados ao consumo e tráfico de droga, no Bairro da Esperança. No papel, tudo certo. Na realidade, não foi bem assim.
Na nova morada não havia só as moradias térreas, com dois quartos cada, a valer 30 euros por mês, e um vasto campo para os animais. Havia um muro. Os três metros de altura que tapavam a vista para a cidade e escondiam o bairro. Ao longo dos mais de 100 metros de betão havia apenas uma saída: um portão fechado a usar apenas em emergências (rusgas policiais ou doenças súbitas).
Nos seis hectares de terreno havia ainda uma cerca a toda a volta. Quem está habituado à liberdade do nomadismo, viu ali uma prisão. Ornamentar o terreno com ciprestes (árvore simbolicamente conotada com a morte) reforçou o rótulo que o novo Bairro das Pedreiras ganhou: o cemitério dos vivos.
Uma década depois, esta comunidade não parou de crescer. São quase 500. Vivem lado a lado com os ratos que mordem as orelhas das crianças à noite, com as cobras que os ameaçam e com os mosquitos que volta e meia os levam ao hospital com erupções cutâneas. As condições de higiene são sub-humanas. Há águas de sarjeta a escorrer entre cada porta.
As casas são agora barracas de pedra. Muitas delas esventradas, alteradas, ao ritmo das discussões entre vizinhos e à medida que as famílias aumentaram, mas o espaço não. E há lixo, muito lixo.
Esta é uma história que não tem heróis, nem vilões. Não há só vítimas, nem só culpados. Não se pode escrever a preto e branco. Tem muitas camadas de cinzento.
Entrar no Bairro das Pedreiras com um microfone e uma câmara de filmar é o suficiente para que se juntem cerca de dez ciganos em círculo. "São da SIC, são da SIC? É para a televisão?". Todos querem contar um problema que os aflige, mostrar que são "tratados como animais". As primeiras conversas seguem o caminho dos olhos: "Veja ali em cima, é o canil municipal. Ao lado há o canil privado e o pombal. Têm-nos aqui com os cães. É só bichezas."
Eugénia Silva, 26 anos, abre a porta de casa. Diz que não o pode fazer muitas vezes por causa do cheiro. De imediato, começa a lamentar que a Segurança Social lhe tenha retirado um dos filhos, porque antes não tinha casa nem condições. Hoje tem casa, mas continua a não ter condições para poder cuidar do menino que conta já com 11 anos. Entretanto, teve mais dois bebés.
Na cozinha, as crianças brincam, choram, não páram. Uma outra jovem mulher, acompanhada de dois homens, tem um olho nos pequenos e outro na conversa de Eugénia. A casa tem infiltrações, um telhado rudimentar e uma casa de banho em que a higiene é um substantivo que não entra, mesmo que a porta há muito tempo já não exista. Apesar disso, na sala pontifica um majestoso televisor LCD.
"Aqui faz frio, chove muito, há muita miséria. Há muito bicho. Ainda há dias tive a sorte de acordar e ver a cobra antes de ela chegar à cama. Era um monstro", insiste Eugénia.
Há quem no bairro acredite que estaria melhor nas barracas. Eugénia acha que não. Mas lamenta os sucessivos rebentamentos dos canos de esgoto, o excesso de lixo e os "ratos que andam à luta". Ela sofre, mas as crianças sofrem mais. Os mosquitos são uma ameaça permanente para quem as águas sujas são mel.
"Este bairro tem vírus. Tenho o meu mocinho sempre todo granulado. É só bichos, eles picam, e enche logo. Volta e meia temos de estar a correr para o hospital para as crianças serem lancetadas", afirma.
A menos de dois quilómetros, na Câmara de Beja, o vereador do Urbanismo do executivo comunista, Vítor Picado, faz o balanço do realojamento da comunidade cigana. Reconhece que muitas coisas falharam. Sobretudo isto: não se passa de uma barraca para uma casa sem um processo de aprendizagem.
E admite a existência de um problema social grave. "Há pessoas a viver em condições infra-humanas? Há. Não são condições humanas e tudo faremos para dar aquelas famílias melhores condições", reforça. Contudo, este, garante, não é um problema que se resolva apenas pela acção de um dos lados. "Algumas das famílias contribuíram para que as condições se degradassem."
Há quase oito anos a fazer a ponte entre esta comunidade e a autarquia está Prudêncio Canhoto. Aos 44 anos já foi eleito "cigano do ano". É uma referência. Não rejeita as culpas dos que lhe são próximos, mas distribui-as por outros. "Fizeram um bairro que não ficou nivelado. Quando chove, como os terremos como estão inclinados, a água passa por baixo e entra nas casas", relata.
As habitações, defende, são "muito pequeninas, e não previram que as famílias iam crescer." Os telhados não escoam as águas. E os carros não resistem aos "roedores".
Os materiais usados na construção são de péssima qualidade. A crítica é unânime no bairro, Prudêncio amplifica-a, e a autarquia de Beja não a rejeita. "A esta distância posso dizer que os materiais usados não foram os melhores. Mas pior ainda foi o acompanhamento da obra", assume Vítor Picado.
Se a transferência do antigo Bairro da Esperança tinha como slogan a passagem de barracas para casas, quem agora ali passa, assiste ao falhanço do projecto. Há pelo menos 12 tendas que se estendem ao longo das margens do terreno. O crescimento das famílias e a paragem de elementos nómadas de outras comunidades são as principais causas. As consequências são a multiplicação de cenários de pobreza material e social.
Fábio e Maria, 26 e 24 anos, acenam freneticamente. Querem mostrar a miséria, a sua miséria. Têm três filhos.
Os olhos embatem numa tenda em que a terra batida é o chão e as divisões não existem. Há uma cama de ferro e os colchões amontoam-se nos cantos. Junto à entrada há uma bilha de gás para cozinhar. A casa de banho é o campo à volta. A água têm de ir buscar a uma fonte próxima. Luz também não existe. Os três filhos (dois meninos doentes e uma menina de sete anos) são a grande preocupação do casal. A mais velha anda na escola e não tem onde tomar banho. A roupa nem sempre seca.
Lembram que há nove anos que pedem uma casa e a resposta é sempre a mesma. "Não há. Mas vemos todos os outros a conseguir", revoltam-se. Enquanto isso, "os ratos entram pelos buracos e a gente não dorme de noite".
Prudêncio sublinha que quem pensou o bairro não teve em conta que "o cigano casa-se cedo" e "constitui família". "A maioria das barracas que estão lá fora são dos filhos que se casam", explica. E os bebés não demoram muito a chegar.
O ciclo vicioso de exclusão fecha-se mais uma vez. Prudêncio, que, muitas vezes, acompanha o autocarro que leva os meninos para a escola, descreve o estado em que as crianças saem das barracas. O frio do Inverno faz com que não lavem a cara porque a água está demasiado gelada. As roupas vão sujas e não raramente enlameadas. As mães não podem lavar a roupa quando chove.
"Assim não conseguimos desconstruir a ideia de que o cigano cheira mal e as pessoas começam a pô-lo de parte porque não se lavou, porque não mudou de roupa. Eles não têm culpa pelos pais que têm", resume.
Um muro é uma protecção ou é um factor de discriminação? A resposta pode ser genericamente afirmativa para as duas opções. Vamos aos factos que construíram de um lado (autarquia) e do outro (comunidade cigana) uma grande barreira.
A saída do Bairro da Esperança para as Pedreiras, conta Prudêncio Canhoto, foi complexa. Primeiro, os locais em estudo foram sempre periféricos. Um problema nunca deve estar no centro. A cada solução apareciam novas questões. Na verdade, era sempre a mesma: ninguém queria ter estes vizinhos indesejados.
Lá se conseguiu que, ao pé da pedreira que pertence à câmara, o bairro ganhasse forma. Mas essa forma deu uma polémica que chegou a Bruxelas, sob forma de queixa da Amnistia Internacional e de outras forças viva da cidade.
Não fomos criados para estar fechados. Nós queremos liberdade. Queremos ter vista para a cidade. Eles não queriam que víssemos a cidade", dizem em uníssono os moradores.
Vítor Picado reconhece, à distância de dez anos, que a construção do muro foi um "erro crasso". Mas acrescenta que a proximidade a uma fábrica e a passagem constante de viaturas fez temer o pior pela segurança do enorme número de crianças que ali viviam. Apesar de admitir a falha, lança a crítica. "Houve um aproveitamento para se vitimizarem."
O muro obrigava a que os moradores andassem um quilómetro para chegar à via principal que dá acesso à cidade. Sem a barreira de pedra são uns meros 100 metros para alcançar a muito movimentada estrada nacional. Ali não existe nenhuma passagem aérea. Neste caso, a questão da segurança já não se levanta?
Picado recorda que a ponte pedonal já existiu, mas que foi retirada por "questões de segurança". A recolocação obriga a aplicação de normativas anti-sísmicas e já se "gastaram 40 mil euros na avaliação". O vereador não responde à pergunta de fundo sobre porque é que foi construído um muro por questões de segurança e não há uma passagem aérea para atravessar a estrada: "É uma questão muito pertinente".
A polémica do muro foi tão grande que o esforço conjunto da comunidade fez que com as mãos de quase todos, armadas de marretas, a barreira aos poucos e poucos fosse desaparecendo. A maquilhagem ao bairro só terminou quando os ciprestes foram cortados pela raiz e a cerca foi abaixo. "Não nos opusemos", revela o autarca.
Há um ano o muro caiu na totalidade, ficando apenas uns resquícios. Mas se o mau embrulho ruiu, o conteúdo do problema manteve-se.
Consegue-se integrar a comunidade cigana numa cidade, juntando-a toda num bairro? Todas as respostas teóricas são negativas. No entanto, na prática foi o que aconteceu. "Sempre tive grandes reservas em relação a essa solução. Acho que não é, nem foi, a melhor, mas percebo porque é que o fizeram", explica Vítor Picado, que não pertencia ao executivo que tomou a decisão.
Prudêncio diz o que parece ser óbvio para todos, mas que quase nunca se torna real. "Não se fazem bairros para ciganos. Temos é de fazer bairros para as pessoas, para depois lhes exigir direitos e deveres. Temos de preparar as pessoas para terem direito a uma casa".
Picado reconhece que os ciganos são "personas 'non gratas'" na cidade. Há sempre muita resistência quando se pensa em alojar ciganos em bairros sociais onde a maioria não seja da mesma etnia.
António Engrácio tem 21 anos e dez de Pedreiras. É uma década de "guerreias (sic)". "É por tudo e por nada. Se estivéssemos num bairro em que houvesse ciganos e não ciganos a nossa comunidade avançava. Estamos no meio de ciganos, queremos sair mas não podemos ter a liberdade que vocês têm", lamenta. "Como somos todos ciganos, a gente não passa de cigano", resume.
O gueto em que vive ganha forma sempre que sai do bairro. Sente os olhares e os cochichos. "Lá vem o cigano, lá vem o cigano". Às vezes, tenta contrariar e lançar um bom dia. "Não me respondem e a gente não gosta e também tratamos mal as pessoas. Já fiz isso", assume. "Tinha um amigo não cigano e ia sair com ele, vinha connosco outro amigo dele que não queria que eu fosse. Tive de guerrear com ele", confessa.
O mediador cigano reclama que só se podem exigir deveres quando se dão direitos. O vereador do Urbanismo garante que ter direitos exige que se cumpram os deveres. Cada um tem uma lista.
Prudêncio aponta o dedo à câmara, alegando que só levanta o lixo no bairro duas vezes por semana. E são meio milhar a fazer crescer o amontoado de restos de comida e de caixas por fora dos caixotes. No resto da cidade a recolha é feita todos os dias. O vereador admite que não pode alegar desconhecimento do caso e reconhece que tal pode "causar estranheza". Garante que falará com os serviços "para solucionar o problema".
A câmara contrapõe com a discriminação positiva feita às crianças da comunidade que são levadas à escola pelo transporte da câmara, quando legalmente não tinham de o fazer por esta viver a menos de três quilómetros do estabelecimento de ensino. "Isso faz com que muitos na cidade digam: 'A mim não me vêm buscar o filho a casa.' Mas nós entendemos que faz sentido fazê-lo para combater o absentismo", destaca Vítor Picado.
Prudêncio concorda, mas apresenta outro facto. O Bairro das Pedreiras é o único onde os transportes públicos não passam. Picado responde: "Se querem ter um transporte que os ligue à cidade têm deveres". E coloca "três nãos" para fazer cumprir esse desejo. "Não podem destruir os autocarros, não podem bater em pessoas, não podem dizer palavrões."
Depois há as contas que ficam por pagar. A autarquia fala de uma dívida de 150 mil euros à empresa municipal de água que "terá de ser paga", "nem que seja em prestações". "Percebemos que isso tem que ver com a utilização irracional da água, como levar os animais para dentro de casa e o terem partido os autoclismos".
O vereador afiança que o dinheiro que for recuperado será para reinvestir no bairro. A juntar às queixas, há ainda as "puxadas" de electricidade que obrigam a EDP a fazer cortes. "Há relatos de agressões aos técnicos quando isso acontece", salienta a autarquia.
A estas queixas soma-se a de ainda hoje ser difícil saber quem mora nas casas. As chaves andam de mão em mão, e elas são vendidas dentro da comunidade. "Estamos a fazer um trabalho mais activo para perceber quem é quem."
O mediador cigano reconhece que "há ciganos que querem mudar e outros que não querem". "Há uns que pensam que só têm direitos e que não têm deveres. Há outros que não têm direitos, e por isso também acham que não têm deveres", sintetiza. E lamenta que o contexto de miséria do bairro não o deixe de forma inequívoca exigir o cumprimento das regras.
Dos 500 habitantes das Pedreiras apenas três têm um emprego, na autarquia. Quase todos os outros vivem do Rendimento Social de Inserção. É como se fosse um destino comum para o qual se caminha sem alternativa.
A Cáritas acompanha há uma década os ciganos daquele bairro. Desde o início que a assistente social Mariana Côco trabalha com esta comunidade "maioritariamente analfabeta" ou "com baixa escolaridade". Há uma dificuldade latente em promover a escola porque os pais não a viveram e não percebem a sua importância. O RSI, neste aspecto, serve um propósito maior, obriga a que as crianças frequentem as aulas para que os parentes possam receber a prestação social. A redução do nomadismo faz o resto.
A evolução, apesar de tudo, já se nota. O absentismo está a diminuir. O psicólogo Armindo Mendes, que integra a equipa há um mês, assegura que estes progressos são fundamentais porque "introduzem cada vez mais cedo os meninos em contextos formais". Ele, que andou a trabalhar noutras comunidades ciganas do Alentejo, realça que a escolaridade nas Pedreiras é ainda mais reduzida. "A baixa formação é um factor de baixa empregabilidade", não duvida Mariana, que não acha que os ciganos sejam de forma geral discriminados.
Esta é a primeira ferramenta em falta para que a integração completa no mercado de trabalho não aconteça. Soma-se outro factor estrutural, o desemprego do concelho (11,5% em 2011). Ou seja, há dificuldade para todos em conseguir um trabalho. Mas há um problema que é específico dos ciganos. Quem é que os vai empregar?
"Ninguém", responde Prudêncio, "a não ser a câmara" e ainda assim para lugares específicos. "Diz-se que o cigano não quer fazer nada, mas se eu tivesse dez oportunidades de trabalho, teria 50 pessoas que a querem", afiança.
Mas olhando para a sociedade que o rodeia, a ideia muitas vezes esbarra no preconceito. "Alguém que tenha um supermercado e que queira pôr lá um cigano, não o faz porque já ninguém lá ia". Enumera ainda outros dois casos de discriminação. A do irmão que concorreu para o lugar de mecânico, "mas quando viram que era cigano" foi rejeitado. E a de um jovem cigano que tem o 12.º ano. Chamaram-no para uma entrevista, mas depois de o verem, disseram que o lugar já estava preenchido.
O cigano diz que se a Câmara de Beja, com os Contratos Emprego-Inserção, pusesse nove ou dez pessoas a trabalhar, "as pessoas iam-se habituando a ver os ciganos a trabalhar". O vereador concorda que é preciso mostrar a Beja que "são cidadãos de pleno direito porque há a ideia de que tudo lhes é permitido, de que tudo lhes é perdoado, e de que eles é que ganham o dinheiro".
Para a elevada taxa de desemprego há um outro factor que foi fazendo mossa ao longo do tempo. No bairro afiança-se que a chegada dos chineses e das lojas dos asiáticos fez com que a venda ambulante deixasse de compensar. Antes compravam as peças de roupa nas fábricas a "cinco euros para as vender a oito". "Os chineses têm tudo à venda por cinco euros", conclui.
Apesar de os diversos actores não concordarem com o diagnóstico, assumem que há muitos erros de parte a parte e que há que mudá-los. Essa mudança passaria sempre pelo realojamento da comunidade, em locais com melhores condições, pelo menos os que vivem nas barracas. Mas isso é possível?
Vítor Picado desfaz ilusões. "Não posso prometer que vou realojar estas famílias. A palavra 'prometer' tem sido abolida do nosso glossário. Não estamos cá para vender banha da cobra, estamos cá para tomar medidas concretas", argumenta. E acrescenta que a solução de realojar as famílias noutros bairros sociais da cidade "é ainda romântica".
Acrescenta que há 460 pessoas em espera na cidade para ter uma habitação social. Essas pessoas estão em barracas? "Não. Estamos sempre a tomar as medidas mais correctas? Também não. Mas posso dizer-lhe que o autarca de um concelho vizinho disse a pessoas da comunidade cigana que lá viviam para virem para Beja porque nós dávamos casa", afirma. "E isso também não pode ser."
O representante dos ciganos reconhece que nem todos "estão preparados para irem para uma habitação digna". "O problema é que se põe tudo no mesmo saco. Quando me dizem que há ciganos maus, há, mas não são todos", alerta.
Por outro lado, lamenta a ausência de oportunidades para intervir de forma mais eficaz na comunidade. "Se me dissessem: 'Vamos realojar dez pessoas para as pôr numa habitação digna', eu ia lá escolhê-las e criavam-se as condições para que os outros percebessem o que tinham de fazer para sair de lá. Aí poderia exigir que cumprissem as regras", explica Canhoto, para quem as Pedreiras são apenas um parque nómada.
A confiança entre ciganos e não ciganos é o elo que, para Prudêncio, é necessário criar. Não existe. "Quando entrei na câmara, muitas pessoas olhavam-me de lado e diziam: 'Olha o cigano', 'É pá temos cá um cigano'. Agora já não me olham de lado; as pessoas foram ganhando confiança. Agora já tenho o reconhecimento". Reproduzir o seu exemplo é um sonho. O sucesso desmonta o preconceito, acredita.
A autarquia de Beja, apesar dos muitos erros assumidos, tem aplicado medidas no terreno para melhorar aquele universo. Mas sente-se sozinha nesta luta. "Ainda sinto pouca abertura por parte da comunidade local para a integração."
Vítor Picado é psicólogo de formação e puxa dos livros para explicar o que a vida real lhe devolve. "Isto joga-se no plano do inconsciente a que na Psicologia chamamos de auto-realização de profecias". O que é isso? "Temos um conjunto de expectativas em relação a uma pessoa e emitimos um conjunto de sinais que o outro acaba por corresponder."
A brecha para furar este ciclo é obrigatoriamente a criação de oportunidades, pelo menos para os mais jovens da comunidade. "Se lhes derem a oportunidade de serem colocados numa empresa, as pessoas que os empregam não vão ficar indiferentes", reforça.
António Engrácio, de 21 anos, estudou até ao 6.º ano. Só queria ter uma vida normal, que o "respeitassem independentemente de ser cigano" e que lhe "dessem um trabalho". "Com esta vida aqui no bairro, não vou para a frente. Podia ir para o lixo, varrer as ruas, cortar relva. Não quero um trabalho de escritório porque não sei ler, nem escrever muito bem. Não vale a pena. Mas queria ter uma vida normal", defende.
E ter uma vida normal para ele "é fora de cigano, como as outras pessoas". "Sair de manhã, chegar à noite e ao fim do mês ter dinheiro. Sair, trabalhar e ganhar o dinheiro honestamente."