Foto
 

O feitiço Marine Le Pen conquista portugueses O feitiço Marine Le Pen conquista portugueses O feitiço Marine Le Pen conquista portugueses

Dizem que ela é a “mãe” de que França precisa, que ela fala quando todos se calam. Muitos portugueses em França querem ver Marine Presidente. Dizem que há maus imigrantes – e não são eles. Entre os jovens com raízes na imigração, os luso-descendentes são os mais dispostos a votar na extrema-direita.

Pedro Rios e Teresa Abecasis, em França
 
 

A sede da Front National Jeunesse de Paris passa despercebida na Rua Jeanne d'Arc. No número 165 não se vislumbra referência à juventude partidária. Um centro de relaxamento e massagens asiáticas serve de vizinho. Um graffiti com a inscrição “antifa”, o diminutivo de antifascista, não foi totalmente apagado pelas camadas de tinta sobrepostas de forma tosca.

Só quando tocamos à campainha e um grupo de jovens nos abre a porta vemos símbolos da Frente Nacional (FN), entre os quais uma caneca com a inscrição “J’ ♥ Marine” e um cartaz com o slogan “ni droite, ni gauche” (nem direita, nem esquerda).

Duas dezenas de pessoas preparam-se para ouvir a palestra de um director administrativo e financeiro de um hospital mutualista. Vai “descodificar” Emmanuel Macron, candidato às presidenciais francesas. Não há gritos nacionalistas nem cabeças rapadas: esta é a nova FN, que procura fugir dos rótulos “extrema-direita”, “racista” e “xenófoba”.

Quando assumiu a chefia da FN, Marine iniciou a “desdiabolização” do partido. Mas o processo em curso – que os militantes juram ser verdadeiro e os opositores apelidam de mero marketing – ainda não sossega o orador. Proibiu os presentes na sala de captar imagens e sons, usou um pseudónimo. Apoiar a FN pode ser uma nódoa no currículo ou “um problema”, como diz aos “camaradas” Davy Rodríguez de Oliveira, vice-presidente da Front National Jeunesse.

O orador mostra um mapa ideológico: Marine Le Pen surge pouco à direita de Nicolas Sarkozy. No mapa, Jean-Marie Le Pen, pai de Marine e símbolo da velha FN, é o político mais à direita. A Frente Nacional mudou. Ou quer fazer acreditar que sim.

A mãe Marine

No dia anterior, uma terça-feira de Fevereiro, as notícias ofereciam um concentrado de algumas das coisas que vão na cabeça de quem vive em França: detenções em Marselha de três suspeitos de terrorismo; a recusa de Marine Le Pen em vestir o véu islâmico para um encontro com o grande mufti da capital do Líbano; buscas policiais na sede da Frente Nacional, em Nanterre, no âmbito da investigação ao alegado uso indevido de fundos do Parlamento Europeu para financiar a actividade do partido.

Aparentemente indiferente às buscas, a poucos passos da sede da FN, Manuel Domingos, um dos 608 mil imigrantes portugueses em França (dados de 2013, que indicam ainda a presença de 680 mil luso-descendentes), serve os cafés a um grupo de trabalhadores portugueses – a energia necessária para retomar o trabalho. O movimento do almoço transforma-se, lentamente, no sossego da tarde. Marine não está aqui, mas podia estar: o Chez Tonton, restaurante do português Manuel Domingos, é local habitual de repasto de dirigentes da Frente Nacional – o “Le Monde” chamou-lhe o “verdadeiro quartel-general” e a “cantina” do partido. Marine não está aqui, mas está: Manuel pôs cartazes da líder da Frente Nacional um pouco por todo o lado.

 
 

Os símbolos portugueses partilham o espaço das paredes com objectos de propaganda da Frente Nacional, muitos deles assinados com dedicatórias ao querido “Tonton”. Manuel convida-nos a subir ao primeiro andar. Uma sala com a placa “privé” está decorada a preceito para receber os dirigentes da Frente Nacional: cartazes e a bandeira francesa. No rés-do-chão, um homem de fato degusta um bife debaixo de um cartaz de Marion Maréchal-Le Pen, a neta de Jean-Marie e sobrinha de Marine que, aos 22 anos, se tornou a mais jovem deputada da história da política moderna francesa.

Há símbolos dos três grandes do futebol português e frases contra o fiado nas redondezas de uma colecção de emblemas das forças de segurança francesas. “A polícia não é respeitada como era antigamente”, atira Manuel, exemplo de uma “crise que é monstruosa devido a todas estas facilidades das fronteiras abertas”. Partilha com a Frente Nacional o diagnóstico dos problemas de França e as soluções. Dizemos que, se há 34 anos, a política de Marine Le Pen estivesse em vigor – a candidata propõe uma redução para 10 mil novas entradas de imigrantes por ano – talvez Manuel não estivesse em França. “Talvez você tenha razão, mas acho que hoje é um abuso de confiança”, responde. E mais à frente conclui: há “uma maioria de bandidos” na nova imigração.

As sondagens indicam uma luta renhida entre Le Pen e o social liberal Emmanuel Macron pela vitória na primeira volta, a 23 de Abril. Os estudos de opinião dão uma vitória a Macron à segunda volta (7 de Maio), mas Manuel Domingos acredita que é desta: Le Pen será Presidente. Gostava que ela celebrasse a vitória no Chez Tonton, como prometeu nas eleições de 2012, nas quais perdeu na primeira volta – desta vez, as sondagens dão como certa uma passagem de Marine à segunda volta. Marine mudou o partido, suavizou a mensagem, afastou-se de comentários anti-semitas e abertamente racistas. Mas Manuel não é um convertido a Marine: já militava no partido nos tempos do pai, “um grande amigo”, antes de o partido construir a sede ao lado do seu Chez Tonton. “É como uma família, está a perceber?”

Uma volta por Puteaux e Nanterre, dois subúrbios de Paris, parece dar força às palavras de Marine, em 2012, numa entrevista ao “Expresso”: “Os portugueses de França são os mais duros para com os imigrantes que vêm para cá e não respeitam ninguém!”. Em 2015, um quarto dos luso-descendentes candidatos às eleições departamentais, de âmbito local, concorreu pela Frente Nacional. Em Maio de 2016, um estudo do Centro de Estudos Políticos de Sciences Po mostrou que entre os jovens franceses com origens na imigração os que têm ascendência portuguesa eram os mais dispostos a votar na extrema-direita – 50% admitiam fazê-lo. E Davy Rodríguez de Oliveira, o vice-presidente da juventude FN, é neto de imigrantes, uma portuguesa e um espanhol. Para ele, não é contraditório ter raízes na imigração e ser a favor de um partido que vê a imigração como um problema.

A Avenida Georges Clemenceau liga Nanterre a Puteaux, cidade geminada com Braga, casa e local de trabalho de muitos portugueses e lusodescendentes. Para chegar ao A La Bergère, haveremos de passar por uma agência da Caixa Geral de Depósitos, uma funerária muçulmana, um restaurante turco e uma escola. São 17h00 e é hora de saída dos alunos e alunas, muitos delas de véu islâmico na cabeça. É um dia normal em França, onde quase 20% da população é imigrante ou descendente de imigrantes (dados de 2013).

O A La Bergere é um café-restaurante numa esquina de Puteaux. À volta do balcão, assume-se sem problemas o apoio à Frente Nacional enquanto se bebericam cervejas e se põe a conversa em dia. Muitos dos clientes são portugueses. À porta, Manuel Baptista, de 58 anos, diz-nos o que lhe vai por dentro: “Voto na Marine Le Pen e espero que ela ganhe. É uma mulher que nunca esteve no Governo. Espero que ela seja uma boa mãe.” E repete: “que ela seja uma boa mãe.”

 
 

Será uma estreia. Manuel votou sempre no PS, mas “eles prometem tudo e não dão nada a ninguém”. A oportunidade de trabalhar nas obras, “sempre nas obras”, levou-o de Guimarães para França há 35 anos. Há cinco foi dado como “handicapé”, conta num português afrancesado. Apesar de parcialmente incapacitado, é “obrigado a trabalhar nas obras” para “comer”. A promessa de Marine de descer a idade da reforma para os 60 anos dá-lhe uma réstia de esperança. “Não é normal que dêem a ‘retraite’ aos 45 e 50 anos a pessoas que trabalham para o Estado e a nós [que trabalhamos nas obras] só aos 65 anos. Não é normal, nós estamos todos rebentados.”

O discurso anti-imigração com que Marine Le Pen espera vencer as eleições presidenciais não assusta o imigrante Manuel Baptista. “Quando vamos para um país qualquer temos que trabalhar”, diz. “A Marine Le Pen não quer ninguém fora daqui: quer que as pessoas trabalhem, não quer que as pessoas fiquem na cama até ao meio-dia.”

 
Foto
No A La Bergère, muitos apoiam a Frente Nacional. Dinis de Sousa é dos poucos que desconfia de Marine: “a gente está mais segura com os outros”.
No A La Bergère, muitos apoiam a Frente Nacional. Dinis de Sousa é dos poucos que desconfia de Marine: “a gente está mais segura com os outros”.
 

Thibauld Dujardin, 26 anos, secretário-geral do 13.º distrito de Paris da FN, afirma que a realidade veio dar razão ao partido, que mudou e se afastou da imagem “não muito boa” que tinha nos tempos de Jean-Marie Le Pen. “Temos pessoas da imigração [nos quadros do partido]: Jean Messiha, que vem do Egipto e que teve a seu cargo a escrita do programa, Guy Deballe, da África Central, que é candidato em Paris às legislativas… Com os motins, o terrorismo, as pessoas vêem que há algo a correr mal no país, que não podemos ser apenas politicamente correctos e esperar que as coisas corram bem. Temos de tomar decisões, temos de parar a imigração”, sublinha.

Entre as decisões a tomar está, sugere, um “convite” para a saída de imigrantes sem emprego – algo que não consta do programa de Marine. “Damos-te um período de tempo para encontrares trabalho, mas, findo esse período, a solidariedade deve ir para os cidadãos nacionais”, afirma. “Não podes ser um custo para a França. Vamos pedir a essas pessoas para saírem se não conseguirem arranjar um emprego.”

O islão como inimigo

A popularidade da Frente Nacional entre a comunidade portuguesa e luso-descendente não surpreende Nonna Mayer. Recebe-nos no seu gabinete no Centro de Estudos Europeus da Universidade Sciences Po, um cubículo demasiado pequeno para tantos livros sobre extrema-direita, eleições, raça e imigração. Um separador reúne apenas escritos sobre os Le Pen e a Frente Nacional. Nonna é uma das maiores autoridades na matéria. Começou a estudar a extrema-direita francesa por volta das eleições europeias de 1984 – o primeiro resultado significativo da FN, 11% dos votos.

“A ideia de que os benefícios sociais vão para pessoas que não os merecem – os pobres indignos e os imigrantes indignos – é uma história muito clássica, não é específica da França. Algumas pessoas dizem: ‘Como é que se pode ser imigrante e votar num partido anti-imigrantes?’ Ora, isso depende: uma pessoa pode ser imigrante, vítima de racismo e xenofobia, e ter os seus próprios bodes expiatórios, ter a sensação de que há outros imigrantes que não se comportam como deve ser. Não é assim tão ilógico votar na Marine Le Pen. Veja-se o caso de Jean-Marie Le Pen, famoso pelos seus comentários anti-semitas: mesmo assim, os inquéritos dizem que cerca de 13% das pessoas que se consideram judias votaram na Marine Le Pen em 2012.”

 
 

A evolução da Frente Nacional manteve Nonna Mayer no seu rasto. Descobriu que o partido desfez as velhas “clivagens” (religião e classe) que geraram o quadro partidário tradicional, conseguindo unir nas urnas “inimigos de classe” históricos, como patrões e operários.

Recentemente, voltou ao seu velho objecto de análise num estudo sobre a sociologia política da precariedade. “Não é só o ser-se pobre, não é apenas uma questão de dinheiro, é o facto de se estar isolado, de não saber se vamos ter o suficiente para comer ou para ter uma casa amanhã”, explica. Entre os inquiridos, ouviu muitas pessoas em situação precária que vêem em Marine “alguém interessante” e imigrantes a dizer “se calhar temos demasiados imigrantes”. “Muitos disseram: ‘Eu sou de origem imigrante, mas, na minha família, nós trabalhámos muito, trabalhámos muito para nos integrar, e os novos imigrantes não’.”

Muitos dos inquiridos por Nonna Mayer e Céline Braconnier votaram à esquerda em 2012. “Mas alguns disseram: ‘Vê? Ao menos quando Marine Le Pen fala, nós percebemos. Ela diz as coisas muito claramente. E ela é menos burguesa do que os outros candidatos."

A Frente Nacional não está sozinha. Um pouco por toda a Europa forças classificadas como populistas atacam a imigração, o islão e o “sistema”. “O problema é que hoje, por toda a Europa, temos este tipo de partidos. São muito diferentes, não têm a mesma história que a Frente Nacional, mas há extremas-direitas que são populistas, nativistas, proteccionistas, eurocépticas. Estão por todo o lado. Crescem, dizem elas, porque protegem os perdedores da globalização.

“Este é o factor por detrás disto, o factor que lhes permitiu desenvolverem-se”, teoriza. “É o medo da globalização. E, na Europa, o medo da integração na União Europeia. Quando entrevistámos pessoas que votam na Frente Nacional, elas dizem-nos que a União Europeia é uma porta aberta para mais imigração. E isso não quer dizer que este é o problema, mas é enquadrado como um problema pela Frente Nacional.”

 

As propostas de Marine que mexem na vida dos portugueses

 
 

No discurso do partido, com a queda do comunismo, a imigração tornou-se o prato principal. Nos últimos anos, aponta Mayer, esta posição cruzou-se com um “novo inimigo”: o islão. “Têm o contexto ideal: refugiados a chegar, dois anos com uma série de ataques terroristas e o arrastar da recessão, da crise económica e do desemprego”, analisa a socióloga.

“Ela diz que está contra o fundamentalismo islâmico e mudou de forma muito inteligente o discurso. Ela afirma: ‘nós somos os campeões da democracia, estamos a defender a democracia contra a ameaça do fundamentalismo islâmico’. Ela coloca-se como uma guerreira contra o fundamentalismo islâmico, visto como uma ameaça aos direitos das mulheres, aos direitos dos homossexuais, aos direitos dos judeus. Diz que a Frente Nacional é a campeã da secularização, um velho princípio da república francesa, o que faz com que a plataforma dela, que é, desde sempre e antes de tudo, como nos tempos do pai dela, anti-imigração, se torne mais aceitável face aos valores da democracia.”

A mudança no discurso da FN ficou conhecida como a “desdiabolização” e chegou ao ponto de levar Marine a condenar as palavras do pai quando este disse que as câmaras de gás foram um “detalhe” da história da II Guerra Mundial. Mas, para Nonna Mayer, “no que diz respeito a rejeitar o outro, a rejeitar as minorias, a rejeitar os imigrantes, a linha mantém-se, dentro do partido e entre os seus eleitores”. Os estudos que fez provam isso mesmo: os eleitores da FN “são sempre mais intolerantes do que todos os outros”.

Extremista, eu?

Davy Rodríguez de Oliveira, o vice-presidente da juventude da Frente Nacional, sorri quando lhe falamos em Nonna Mayer. Garante que o partido mudou mesmo. Se não tivesse mudado, assegura, ele, que há poucos anos militava pela esquerda, não estaria a falar connosco no número 165 da Rua Jeanne d'Arc, rodeado por livros (de Marx – sim – a tomos sobre a II Guerra Mundial e religião).

Nonna investiga onde Davy, que tem 23 anos, estuda. Em 2015, ele e outros jovens quebraram a rotina da prestigiada Sciences Po, onde estudaram François Hollande, Jacques Chirac e José Sócrates: abriu um grupo representativo da Frente Nacional. Antes, tinha estado no Partido Socialista e no Parti de Gauche, comparável ao português Bloco de Esquerda. O que o levou à outra ponta do espectro político? Ele, que na entrevista à Renascença cita o marxista Žižek, rejeita a geometria. “A FN é um partido um bocadinho diferente dos outros porque não é de esquerda nem de direita. É um partido que diz: tens de um lado os patriotas e do outro os mundialistas. Os que querem defendem a cultura francesa, as culturas europeias e os modelos sociais e, do outro lado, os que querem desfazer os países para impor a União Europeia”, argumenta. A esquerda pareceu-lhe já “submetida” à União Europeia.

Origem geográfica dos imigrantes em França em 2013

Clique nos continentes para ver em detalhe e no total para voltar
Entre os quase 6 milhões de imigrantes que viviam em França em 2013, os portugueses representavam cerca de 10% do total. São a nacionalidade europeia mais representada, e a terceira a nível mundial, atrás dos argelinos e marroquinos. Estes números incluem apenas os imigrantes de primeira geração. Fonte: Insee, censos da população de 2013

Uma conversa com Gaëtan Dussausaye, presidente da Front National Jeunesse, foi decisiva para alterar a forma como Davy via o partido. Diz ele agora: a FN não é “extremista”, “racista” ou “homofóbica”, só tem posições claras. Uma delas: “Estamos a favor de uma política de assimilação das populações que estão a chegar de África. É dizer ‘não’ a pessoas que chegam a um país e que impõem a sua cultura a esse país. Se vêm viver para a França é porque querem viver como franceses, como europeus.” O programa de Marine advoga a “assimilação republicana, princípio mais exigente do que a integração”.

Mais à frente, Davy reforça a ideia de que há bons e maus imigrantes e descendentes de imigrantes. E os portugueses estão, regra geral, entre os bons. “Os franceses com origens portuguesas estão muito mais bem assimilados do que as populações africanas”, acredita. Hoje, conclui, a imigração tornou-se um problema. Económico (com a taxa de desemprego a rondar os 10%, a “prioridade nacional” deve imperar – mesmo que entre os imigrantes a taxa de desemprego seja o dobro, segundo dados de 2015 do instituto nacional de estatísticas francês) e social.

Nas 144 medidas apresentadas por Marine Le Pen, a “prioridade nacional” traduz-se, por exemplo, numa taxa a aplicar aos trabalhadores estrangeiros. Uma medida que afectaria os cerca de 500 mil portugueses sem nacionalidade francesa.

 
 

“Nos subúrbios de Paris há muito racismo contra os brancos. Em muitos sítios os brancos são uma minoria e são discriminados por serem brancos”, garante Davy, que vive em Saint-Ouen-l'Aumône, a 27 quilómetros do centro da capital. Thibauld Dujardin, companheiro de partido, ficou desiludido com Sarkozy e Hollande por não conseguirem impedir novos motins nos subúrbios parisienses, depois dos eventos trágicos de 2005. Foi por isso que aderiu à FN. Diz que, em vez da multiculturalidade, impôs-se uma “uniculturalidade”, que não é francesa. É árabe? “Estou a falar de qualquer cultura que não é assimilada pela cultura francesa.”

Nonna Mayer conhece este discurso. “O truque de Marine Le Pen é focar-se exclusivamente nestes subúrbios”, alerta. Os problemas de delinquência não são o todo, mas a parte: “não se pode extrapolar para França e para todos os imigrantes”, nem sequer para todos os subúrbios, defende.

A socióloga reconhece problemas, mas foca-se nas causas. “Estamos numa situação em que é difícil conseguir atingir objectivos económicos e é mais fácil concentrar o debate político em questões de identidade”, observa. “O problema não está na assimilação, mas em dar os meios”, argumenta. “Muitas vezes, mesmo quando têm um curso superior, por causa dos nomes e por causa dos bairros sociais de onde vêm, as pessoas não os aceitam. Há muitas provas que mostram que há discriminação. Para o empregador, não é a mesma coisa se o teu nome é Mohammed, Frédéric Dupont ou Mohammed Ben Ali. Existem problemas, mas o essencial é não concentrar a discussão na religião ou na imigração, mas sim no que podemos fazer para os ajudar a sair da miséria. Estes subúrbios desfavorecidos não são habitados apenas por imigrantes e filhos de imigrantes. Considero que o primeiro problema é económico e social.”

Alergia à política

A portuguesa Luciana Gouveia vive perto de Saint-Denis, o departamento dos arredores de Paris “que é mais categorizado como multicultural. Mas a França é isso mesmo”. Coordena os projectos da Cap Magellan, a maior associação de luso-descendentes em França, que passa despercebida num recanto sossegado da Avenue de la Porte de Vanves. O edifício concentra várias iniciativas com bandeira portuguesa: a Cap Magellan, o “LusoJornal” (semanário franco-português) e a Câmara de Comércio e Indústria Franco-Portuguesa. Ali ao lado, um café ostenta uma bandeira da Colômbia e serve pizas para fora. Um exemplo da multiculturalidade que Luciana receia estar em risco se Le Pen for eleita Presidente.

 

Os adversários e as propostas que mexem na vida dos portugueses

Emmanuel Macron

Independente,
social liberal

Fim da jornada semanal de 35 horas para os jovens

Benoît Hamon

Partido Socialista,
esquerda

Rendimento universal de existência

François Fillon

Os Republicanos,
direita

Redução da entrada anual de novos imigrantes

Jean-Luc Mélenchon

Partido de Esquerda,
esquerda radical

Subir salário mínimo para 1.326€ (35 horas)

 
 

Uma equipa com franceses e portugueses trabalha ao computador. Há poucos dias estavam todos concentrados com a organização dos primeiros Estados Gerais da Luso-descendência. Agora, é o dia seguinte: trabalham para pôr de pé “uma rede de actores” que ajude, por exemplo, a alargar o ensino do português.

“Temos 30 mil pessoas a aprender português, o que é nada quando há 700 mil a aprender o alemão e mais de dois milhões a aprender o espanhol. Os portugueses não conseguiram, não conseguem, não têm essa tradição de se estruturarem, de se organizarem, de funcionarem como um lóbi junto das autoridades públicas portuguesas e francesas”, diz. Isto apesar de existirem “mais de 900 associações portuguesas em França”.

A delegada geral da Cap Magellan liga esta falta de representação a uma “espécie de alergia e de aversão à política”. Muitos saíram de Portugal sem terem experimentado a democracia; outros não pedem a nacionalidade francesa, apesar de só ela permitir votar nas presidenciais.

Carlos Pereira, director do “LusoJornal”, relativiza a aparente falta de participação cívica da comunidade portuguesa. Lembra que quatro mil eleitos para municípios franceses são de origem portuguesa. Um número que esconde outro: foi o “LusoJornal” que fez as contas e descobriu que a Frente Nacional acolheu nas suas listas 25% dos candidatos luso-descendentes. “Isso não quer dizer que há mais militantes [portugueses] na Frente Nacional [do que noutros partidos]. Há tão poucos militantes na Frente Nacional que acaba por ser muito fácil chegar a candidato”, contrapõe.

Não ter a nacionalidade francesa não era um problema para Luciana até Marine Le Pen se tornar um problema para quem teme ideias “claramente racistas e xenófobas”. Gostava de poder votar contra ela porque a sua popularidade nas sondagens é “superpreocupante”.

 
 

“A grande receptividade das ideias da Marine Le Pen vem do medo do outro, o medo de perder o nosso conforto dificilmente alcançado (e não retiro nenhum mérito aos que vieram nos anos 60 e 70), que isso seja tudo posto em causa com esta dinâmica migratória que existe agora”, acredita Luciana.

Mostramos-lhe o estudo de Sciences Po que indica que, em Maio de 2016, 50% dos jovens com ascendência portuguesa apoiava a Frente Nacional. Pede para fotocopiá-lo. “Fico um bocado surpreendida”, reage. “Imagino que sim, que haja uma espécie de valorização do mérito e do esforço dos pais, considerando que isso está posto em perigo. Também há uma parte de egoísmo: os outros vêm tirar a mim, não quero.”

Carlos Pereira relativiza. Admite que a Frente Nacional aposte numa “instrumentalização” da comunidade portuguesa – “vocês são os bons imigrantes”. “Mas não quer dizer que haja mais votantes [com origens portuguesas] na Frente Nacional do que nos outros partidos. Não acredito nisso. E não quero acreditar”.

Hermano Sanches Ruivo, vereador dos Assuntos Europeus na Câmara de Paris, também não. Na janela do seu gabinete pôs uma bandeira europeia. “Sofri racismo quando era puto, quando tinha dez anos”, conta. Chegou a França aos cinco anos. A vontade de agir levou-o à política. Nestas eleições, apoia Benoît Hamon, o candidato apoiado pelo Partido Socialista.

 
 

“Quando sofri racismo, podia muito bem ter feito como alguns, poucos, que até afrancesaram os nomes. De Ferreira passaram para Ferrère, por exemplo”, conta. A família apostou na “dupla cultura” – portuguesa e francesa – para o educar. Já a “extremista” e “xenófoba” Marine Le Pen, que só admite a dupla nacionalidade para cidadãos europeus, ataca-a, considera Hermano. “É a negação do que faz a força da França.”

O vereador luso-francês não isenta de responsabilidades os partidos que têm governado a França. “Não se resolveu completamente a descolonização”, não se salientou que “a imigração é uma mais-valia para a França” e que os seus resultados económicos são “positivos”, não se conseguiu encontrar uma forma de integrar plenamente diferentes religiões numa república que faz da laicidade um princípio fundador. Conclusão: “Criaram um espaço para que a solução seja sempre contra o imigrante, contra o estrangeiro, contra a Europa.”

O tempo das barracas

Estacionado o potente carro na zona do Plateau, uma zona alta de Champigny-sur-Marne, a 12,5 quilómetros do centro de Paris, Gilberto Francisco viaja no tempo.

“Há 56 anos, quando nasci, no dia 18 de Fevereiro, isto estava completamente abandonado. Tudo o que vocês vêem aqui, esta zona do Plateau, era uma zona cheia de árvores, abandonada. Hoje transformou-se numa grande zona industrial. Mesmo estas casas não existiam, já foram feitas depois dos anos 60. Por estar ao abandono é que os portugueses se instalaram aqui, se quisermos, fraudulosamente. Praticamente viemos sem autorização”, conta.

Eram os tempos das “bidonvilles”. Em meados dos anos 1960, as autoridades estimam que 100 mil pessoas vivessem nestes aglomerados de barracas. Muitos eram portugueses. “Eram barracas com portas que eles encontravam nas obras. Traziam placas e faziam as barraquitas onde se aqueciam mal. Não tinha condições para viver. Às vezes viviam quatro ou cinco portugueses na mesma barraca.”

 
 

A vida era miserável. “Chamavam-me o picha fria porque andava sem calções, sem nada, os pés descalços e só tinha uma camisolita”, conta. A população não gostou de ver aquela multidão de portugueses “mal vestidos” que “não sabiam falar” francês. A acção de Louis Talamoni, presidente da Câmara de Champigny entre 1950 e 1975, foi decisiva – por isso, em 2016, um grupo de portugueses decidiu homenageá-lo com a construção de um monumento no Plateau. “Permitiu-nos ter água, ter luz, eu poder ir à escola, a gente ter papéis para trabalhar, ter uma simples caixa de correio. Ele sempre nos defendeu porque viu que era uma população de trabalhar, não uma população para invadir”, diz Gilberto. A estátua em honra de Talamoni é cercada por dois mil tijolos, assinados por portugueses que passaram por Champigny, familiares seus e políticos como o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Gilberto e muitos outros portugueses “estão bem na França”. Mas repete-se o discurso que ouvimos em Puteaux e Nanterre: outros imigrantes preferem viver à custa dos apoios do Estado. O discurso da “radical” e “provocadora” Marine não o seduz – prefere François Fillon. “O voto em Marine Le Pen é um voto de sanção, uma maneira de o francês dizer ‘estou farto’”, o que explica os prováveis bons resultados numa primeira volta, acredita. “À segunda ela nunca ganhará porque as pessoas têm medo: não só pela imigração, mas porque ela quer sair da Europa, quer voltar ao franco. É uma política que só diz ‘estou farto dos imigrantes, do islamismo, dos radicais’. Mas que solução tem ela? Nenhuma.”

 
Foto
Gilberto Francisco junto ao monumento que os portugueses construíram em Champigny-sur-Marne
Gilberto Francisco junto ao monumento que os portugueses construíram em Champigny-sur-Marne
 

Fácil de entender

Regressamos ao centro de Paris. Fernando Moura gostava de poder votar em alguém como a “senhora Margaret Thatcher”, alguém que consiga dizer “sim” e “não”, porque “a França anda muito à deriva”. Le Pen não é essa pessoa, afirma, numa pausa dos seus cozinhados do restaurante Saudade, o estabelecimento português “mais cotado” da capital francesa. Mariza, Fernando Mendes e Tony Carreira já lá passaram, revelam fotografias colocadas à entrada.

“Tudo o que é extremo não é bom”, diz Fernando Moura, que vai votar em Fillon. “Para nós, portugueses, acho que nada vai ter influência, seja ela [Marine] ou não, porque somos europeus, estamos todos legalizados”, acrescenta. Mas “sair da Europa e voltar ao franco” seria negativo, acredita.

 
 

França chamou Maria Trigo há mais de três décadas. Emigrou para França com o objectivo de ganhar dinheiro para se casar. “E, afinal de contas, vim para aqui e aqui fiquei. Arranjei outro moço e não me casei com o outro”, confessa, sentada no sofá do apartamento a que tem direito como porteira de um prédio da endinheirada Quai de Grenelle, a centenas de metros da Torre Eiffel. Do outro lado da rua, junto ao Sena, um monumento lembra as vítimas de “perseguições racistas e anti-semitas” cometidas pelo governo de Vichy durante a II Guerra Mundial. Escrito na pedra, o pedido: “n’oublions jamais”. Não esqueçamos nunca.

Foi a ver televisão e a falar com os franceses que aprendeu “qualquer coisa” de francês. Na sala acumulam-se “souvenirs de Portugal”, de crachás a fotografias. Mas conversar com Maria, mãe de dois filhos, é falar sobretudo de trabalho: “Eu estou sempre ocupada, se não estou é porque não posso”. Cozinha, arruma o lixo, trata da higiene de idosos. Noutros tempos passava a ferro as roupas do conservatório, onde o marido trabalhava, e aguentava as noitadas – hoje, aos 61 anos, acorda às 4h30, mas não consegue repetir tais proezas. Ganha dois mil euros por mês, que tenta poupar para a reforma que quer passar entre Portugal (“quero estar lá ao pé da praia”) e França.

Adoraria que Marine Le Pen fosse eleita – “para meter uma certa ordem”. E as limitações à imigração? E o fecho das fronteiras? “Pode ser que não seja para os portugueses”, responde, “que seja para esses países que não fazem parte da comunidade europeia”.

 
 

Eunice de Lemos está apenas há um ano e meio em França, a fazer um mestrado em História da Filosofia na Sorbonne, e sente que Marine está em todo o lado. As suas entrevistas televisivas batem em audiência as dos rivais, ela “está na boca do povo”, tem um “carisma extremo que consegue conquistar as massas”.

Eunice e o namorado, o luso-belga Bernardo Haumont, estão “preocupados” com a possibilidade de Marine se tornar Presidente, revelam-nos no café do Studio 28, um cinema do quarteirão parisiense de Montmartre fundado em 1928. “Acho que há uma estratégia de embelezamento do partido que visa alargar o espectro de eleitores da Front National e que está a resultar claramente”, receia Eunice. “Vi um documentário bastante recente sobre os novos eleitores do partido. Mostravam, por exemplo, um casal gay, dois homens que votavam Marine Le Pen; um senhor que emigrou do Egipto para França nos anos 70 e que hoje vota Front National; um ‘rapper’ de 30 anos, com origens no Norte de África, que vota Front National. Isto jamais seria possível se a Marine Le Pen não tivesse procedido a uma estratégia muito eficaz de tornar o partido noutra coisa. Já não é só um partido de extrema-direita claramente racista, xenófobo, etc., mas, no entanto, não deixou de ser isso.”

 
Foto
Eunice e Bernardo estão “preocupados” com a popularidade de Marine Le Pen
Eunice e Bernardo estão “preocupados” com a popularidade de Marine Le Pen
 

Nonna Mayer, que estuda a Frente Nacional há mais de 30 anos, sente que pela primeira vez há pessoas que acreditam na hipótese de um Le Pen se tornar Presidente. “Existe a sensação de que o único candidato político que tem uma mensagem clara, fácil de entender, é Marine Le Pen. Eles têm um partido, um candidato, uma mensagem, um meio. E ela diz: ‘Fechem as fronteiras, parem com a imigração e a França vai voltar ao que foi antes’.”

“Não temos uma mensagem tão clara nem à direita nem à esquerda. A esquerda e a direita estão fragmentadas e a força de Marine Le Pen é a fraqueza dos seus opositores”, analisa. Para vencer Le Pen é preciso mais do que descodificar a sua mensagem. “Não basta voltar a dizer que o que ela diz é mentira. É preciso propor algo que entusiasme, traga esperança e fé aos eleitores.”

 

Março de 2017 – Renascença

Foto
Top