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Luísa acordou estremunhada, com os pais a virarem-lhe a cama. O barulho da água a bater no plástico, que a mãe tinha estendido por cima dos cobertores para que não se molhassem, não chegou para abafar os gritos vindos da rua. “Parece que está alguém a gritar.” A mãe já tinha dito o mesmo, mas o pai não ligou. Só que naquela altura os gritos estavam mais fortes. Era um primo que vinha avisar. Avisar de que aquela chuva, que tinha caído todo o dia, se transformara numa tromba de água e estava a levar tudo à frente: os carros, as casas, as pessoas. Em casa de Luísa e no resto da aldeia de Quintas, no concelho de Vila Franca de Xira, mais ninguém dormiu nessa noite.
Luísa Fajardo tinha 13 anos. Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967 deitou-se cedo, cansada de um dia inteiro a trabalhar à chuva. Os pais, no entanto, nem chegaram a ir à cama.
É muito importante não deixar esquecer. Os que partiram, não merecem ser esquecidos.
Luísa Fajarda, sobrevivente de Quintas
A irmã, mais velha 14 meses, ficara, como de costume, em casa dos avós. O pai ainda tentou ir lá ver se estavam todos bem, mas a água não o deixou passar.
Só quando amanheceu é que conseguiu lá chegar. A casa estava sem telhado. A avó, o avô e a irmã de Luísa estavam mortos. Em toda a aldeia, famílias inteiras tinham perdido a vida, afogadas dentro de casa. “De manhã, quando começaram a retirar os corpos, estiveram à minha porta, em cima de uns taipais que o meu pai tinha descarregado à noite, 27 cadáveres.”
Apesar de terem passado 50 anos, Luísa lembra-se até das posições desses corpos. “Percebia-se que muitos tinham sido apanhados a dormir, tal foi a rapidez com que tudo aconteceu.”
A placa inaugurada pela Junta de Freguesia de Castanheira do Ribatejo no largo da aldeia de Quintas homenageia as cem pessoas que morreram naquela noite de 25 para 26 de Novembro, há 50 anos.
Mais acima, um outro monumento nomeia, uma a uma, as vítimas das cheias, e termina com uma palavra para os mortos que nunca foram identificados. Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram em Quintas naquela noite. Mas sabe-se que mais de metade da população sucumbiu debaixo da água e da lama, das cheias e das enxurradas que elevaram o caudal do Rio Grande da Pipa ao nível do primeiro andar das casas do largo.
Ainda hoje não se sabe ao certo quantas pessoas morreram naquela noite. As cheias de 1967 continuam envoltas em mistério. O historiador Miguel Cardina, que em 2014 foi co-autor de um estudo sobre o impacto político e social das inundações na região de Lisboa, reconhece que falta fazer a história política, social e ambiental da maior catástrofe natural em Portugal no último milénio, logo a seguir ao terramoto de 1755.
Miguel Cardina culpa a censura, responsável por uma comunicação social manietada e que nunca revelou na totalidade o que se passou naquela noite, mas também o facto de o impacto da tragédia se ter abatido sobre zonas pobres, rurais, afastadas do centro. Os dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) revelam que não foi onde a chuva foi mais forte que se registaram mais vítimas mortais: o número de mortos foi mais elevado nas zonas mais pobres e degradadas.
António Araújo, jurista e historiador, acrescenta que “o classismo que levou a que todas aquelas pessoas morressem e fossem esquecidas perdura até aos nossos dias porque não houve destruição de centros de poder ou locais simbólicos. O simbolismo dali eram as barracas.”
1967 foi um ano seco e o Outono também começou sem chuva. Só no início de Novembro é que se começou a verificar uma sequência de dias chuvosos. O geógrafo Francisco Costa, que tem estudado o fenómeno das cheias, não tem dúvidas em afirmar que se tratou de “um fenómeno anormal, excepcional mesmo à escala centenária, de grande concentração de chuva”. Segundo o IPMA, a probabilidade de um evento destes acontecer é de uma vez em cada cem anos.
De Cascais a Alenquer, passando por Oeiras, Lisboa, Odivelas, Loures, Alhandra, Alverca e Vila Franca de Xira, a chuva chegou a atingir os 170 litros por metro quadrado. Em toda a região da Grande Lisboa, a média ultrapassou os 100 litros. Em apenas cinco horas, registou-se um quinto da precipitação verificada no ano inteiro. O pico deu-se entre as 19h00 e a meia-noite.
Centenas de pessoas morreram. Oficialmente, foram 462, mas na realidade podem ter chegado às 700. Bairros e aldeias foram levados pelas cheias e pela lama, 20 mil casas ficaram danificadas, os prejuízos foram calculados em 3 milhões de dólares a preços da época – cerca de 20 milhões de dólares (mais de 17 milhões de euros) a preços actuais.
Prejuízos incomparáveis mesmo com outras cheias na Grande Lisboa. Francisco Costa dá o exemplo das cheias de 1983, que provocaram a morte de sete pessoas e danificaram 650 habitações. Acrescenta ainda a contabilidade das cheias de 2008, que provocaram um morto, um desaparecido e problemas na circulação.
Jorge Simões e José Brazão vinham de Coimbra com o cantor José Afonso quando começaram a ouvir na rádio que estava a acontecer uma catástrofe em Lisboa. Danilo Matos vivia num quarto na Alameda e passou a noite a ouvir a chuva cair. No dia seguinte era domingo, mas foram todos para o Instituto Superior Técnico, onde estudavam, para tentarem perceber o que se estava a passar.
António Alves Redol já tinha acabado o curso, mas continuava muito ligado à associação de estudantes. Foi um dos principais organizadores da ajuda estudantil às vítimas das cheias, uma ajuda proposta pela Juventude Universitária Católica, que conhecia o terreno, mas não tinha meios.
“Era no Técnico que recebíamos as inscrições dos estudantes, formávamos as equipas e distribuíamo-las pelo terreno depois de devidamente equipadas. Houve dias em que chegaram a estar mil estudantes a trabalhar ao mesmo tempo. Na altura, fizeram-se as contas e concluiu-se que os estudantes executaram, no total, 44 mil horas de trabalho”, recorda Alves Redol, filho do escritor com o mesmo nome (1911-1969).
António nunca saiu do Técnico, mas Jorge e José estiveram na Vala do Carregado. Danilo Matos também. “A causa de tanta desgraça não foi a chuva, foi a miséria. Foram postas a nu as condições sociais em que muitas pessoas viviam nesta cidade, mas também a inoperância do governo”, afirma Danilo Matos. “O governo atrasou-se, paralisou, só conseguiu mandar para o terreno o Movimento Nacional Feminino, que só ia atrapalhar, e a GNR, que era uma polícia preparada para reprimir e não para salvar gente. Essa inoperância gerou uma enorme revolta na população.''
Diana Andringa estava no segundo ano de Medicina e pertencia à pró-associação de estudantes. Por isso, quando se começaram a organizar as brigadas de vacinação, foi imediatamente incluída. “Dei, de repente, por mim – eu que tenho horror a agulhas – a dar vacinas a pessoas, muitas vacinas a muitas pessoas, em Frielas, na zona de Loures.”
Para Diana Andringa, a vacinação só durou um dia. A seguir, passou de médica a jornalista, uma mudança que ficaria para a vida. Tornou-se uma das redactoras do “Solidariedade Estudantil”, o jornal onde os estudantes relatavam o que encontravam no terreno.
“Foi o meu único êxito editorial”, ironiza a jornalista. Um dos números do “Solidariedade Estudantil” chegou a tirar 10 mil exemplares e muitas pessoas nem esperavam que fosse distribuído na rua: subiam as escadas do Técnico e iam buscar o seu jornal.
“A partir de certa altura, a GNR começou a perseguir os estudantes. O regime reagiu muito mal e a censura começou a cortar as notícias e mesmo a falseá-las”, recorda Diana Andringa. “Foi aí que desisti de ser médica e resolvi ser jornalista.”
O auxílio dos estudantes não se ficou pelas universidades. Em muitos liceus da Lisboa, os alunos foram também mobilizados. Jorge Wemans tinha 14 anos e andava no Liceu Padre António Vieira. “O professor de Religião e Moral, que era padre, já organizava várias acções na escola e foi através desse grupo que tomámos conhecimento das proporções da tragédia e de que era possível fazer alguma coisa. A organização cruzava pessoas envolvidas no movimento associativo universitário com algumas estruturas da Igreja, nomeadamente os movimentos de acção católica. Foi assim que fui para Odivelas e para Benfica com um conjunto de amigos do liceu.”
Wemans não se lembra de quantos dias andou no auxílio às vítimas, mas recorda-se que o ponto de encontro era o centro da Rua Martens Ferrão, em Lisboa, onde vivia um grupo de padres, e que viajavam numa carrinha Peugeot até ao local onde ficavam a trabalhar.
“A recordação mais forte que tenho é de lama, lama muito pesada que tínhamos muito dificuldade em remover. Havia muitos animais mortos, mas nunca vi cadáveres humanos. Lembro-me do peso, das pessoas muito silenciosas, de um ambiente tão pesado como a lama. As pessoas sentiam-se tão abandonadas que agradeciam imenso a presença de miúdos de 14 anos.”
O confronto com a tragédia mudou consciências. “A ideia de que as pessoas estavam a morrer debaixo de lama sem ninguém para as socorrer. A ideia de que às portas de Lisboa estava a morrer gente porque chovia marcou profundamente todos os estudantes envolvidos”, garante Diana Andringa.
Danilo Matos não tem dúvidas de que “as inundações de 67 foram um marco quer na história política do país quer na história política do movimento estudantil. Houve uma politização muito grande tanto do movimento dos estudantes como da sociedade em geral. O fascismo estava a dar o seu estertor e as cheias foram um marco da luta contra o fascismo.”
Alves Redol, que recebia os estudantes quando regressavam do terreno, teve a noção de que “muitos tinham visto um cadáver pela primeira vez e muitos tinham visto um bairro de lata pela primeira vez, o que teve um impacto enorme junto”.
“O contacto dos estudantes com aquela realidade foi muito importante. Foi um passo importante para a nossa abertura ao mundo até porque vínhamos quase todos de casas atapetadas. Nunca tínhamos calçado umas botas e metido os pés na lama”, reconhece Jorge Simões.
Para o historiador António Araújo, aquele banho de realidade foi determinante. “Uma coisa é ler Marx no conforto do quarto, outra é ser confrontado com a ida para a guerra ou com as cheias, situações que configuram, na prática, os postulados marxistas. Aquilo não eram papéis, era a realidade duríssima de corpos inchados pela água e toda a condição humana que ali se revelava. Era a revelação não só da morte, mas também da vida que levou àquela morte. Tudo aquilo era atirado à cara dos estudantes quando chegavam ao terreno.”
“Para muitos estudantes, as cheias de 67 foram um momento marcante de tomada de consciência das desigualdades e da injustiça social, de afastamento do ideário do regime e de politização muito rápida”, afirma o historiador Miguel Cardina. “Já não se tratava apenas de reivindicar mais autonomia para os movimentos estudantis, tratava-se de entender o estudante como alguém socialmente comprometido.”
“O mais importante foi que, pela primeira vez, fora das organizações clandestinas de oposição ao regime, conseguimos organizar algo importante, que envolveu muita gente”, constata Jorge Wemans.
António Araújo cita o historiador Pacheco Pereira, que considera que foi nessa altura que o PCP perdeu o controlo do movimento estudantil. “Lidar com a tragédia não era próprio da organização do PCP. Para uma boa parte do movimento estudantil, o PCP passou a ser pouco activo nas áreas sociais e incapaz de responder.”
Jaime Assunção era bombeiro de 3ª classe em Odivelas. Tinha acabado de se sentar para jantar quando a sirene tocou. “O jantar era um bife com ovo e batatas fritas. Molhei o pão no ovo, cortei um bocadinho de bife, mas já não cheguei a provar as batatas. Levantei-me e fui para o quartel.”
Guilherme Esteves era ajudante de comando no mesmo quartel. Nessa noite estava em casa com um pouco de febre quando lhe ligaram a dizer que as chamadas eram cada vez mais. “Desci a Rua do Souto e junto aos antigos Correios de Odivelas encontrei o primeiro morto. O senhor Abílio, vendedor de gás, estava entalado entre dois carros. Fui eu que o levei para o quartel.”
Quando chegou a casa, o bombeiro de 3ª classe Abílio Rodrigues da Silva já tinha a noção de que chovia muito. Tinha demorado quase dez horas a chegar da Base de Beja, onde trabalhava, até Odivelas, onde vivia. Estava tão cansado que resolveu não responder à sirene dos bombeiros. Só foi para o terreno no dia seguinte. “Quando vim para baixo, a ponte já tinha sido levada pela água e o quartel estava cheio de mortos. Foram 63 só no primeiro dia. Passaram-me todos pelas mãos antes de serem levados para o Instituto de Medicina Legal.”
O que se estava a passar em Odivelas ou nas outras zonas da região de Lisboa martirizadas naquela noite ficou, em boa parte, fora das páginas dos jornais. Logo no dia seguinte, o “Diário da Manhã”, afecto ao regime, escrevia no editorial: "Estamos perante a vitória do homem que a natureza tinha esmagado.”
Metíamos dois ou três mortos na carrinha e eu tinha que vir cá atrás porque eles não vinham atados. Ia em cima deles para não caírem até chegarmos ao quartel."
Abílio Rodrigues da Silva, bombeiro de Odivelas
Em contraponto a esse tipo de leitura vai surgir outra, nos jornais da oposição, em que a questão acentuada já não é a fatalidade, mas os impactos diferentes consoante as condições em que vivem as pessoas.
Joaquim Letria era jornalista no “Diário de Lisboa”. Nessa noite, quando começou a chover dentro da sua casa, ligou para os bombeiros e percebeu que se estava a passar algo de muito grave.
Foi logo para o jornal. Começou por fazer reportagem na Baixa de Lisboa, acabou na aldeia de Quintas. “A nossa chegada a Quintas parecia um desembarque numa zona de guerra. O que encontrámos foi horrível. Imensos mortos. Nunca tinha visto nada assim. Entrámos de barco com os bombeiros de Santarém. Era um mar. As pessoas estiveram dias sem auxílio, não havia comunicações, não havia acessos.”
Parte das reportagens de Joaquim Letria foi cortada pela censura. Além disso, muitas informações eram, pura e simplesmente, negadas. “O ‘Diário de Lisboa’ entrou em choque com o Ministério do Interior porque eles procuravam minimizar as coisas e nós tínhamos a ideia contrária. Então, o Vítor Direito, que era o chefe de redacção, mandou-nos, a mim e ao Pedro Alvim, contar mortos. Chegámos perto dos 700.”
Mário e Rosa Sampaio eram donos de uma loja de tecidos na vila baixa de Alenquer. Quando se preparavam para ir dormir, perto da meia-noite, um amigo veio avisá-los de que estava a entrar água no armazém onde guardavam a mercadoria. Correram para tentar salvar os tecidos, passando-os para o andar de cima, mas Mário acabou por ficar preso dentro do armazém.
“Comecei a trepar pelas prateleiras e, quando vi que a água continuava a subir, tentei mergulhar para sair da casa, mas não consegui. Voltei para trás, fui para a última prateleira, que estava cheia de camisas de noite de flanela, tirei a roupa toda e vesti duas camisas de noite de senhora e fiquei ali à espera de morrer”, recorda Mário. Ficou sete horas deitado na última prateleira, aproveitando a caixa de ar formada pelas vigas do tecto para respirar.
Presa no andar de cima devido à água, Rosa passou a noite na varanda, sem saber do marido. “As montras rebentaram, já não se viam as árvores do jardim, era o fim do mundo. Vi tudo. Vi passar bocados de pontes, móveis, carros, pessoas a gritar, umas pessoas em cima do portão e que acabaram por morrer. Foi uma noite de muita aflição.”
A rapidez com que as águas subiram em Alenquer deveu-se à derrocada da Fábrica de Papel e Cartão da Ota, situada junto ao rio que atravessa a vila.
“A fábrica de papel rebentou e saíram toneladas de papel, máquinas, entulho. A enxurrada destruiu quatro pontes e a água subiu tão rapidamente que os bombeiros nem tiveram tempo de tirar as viaturas”, relata João Mário Oliveira, então presidente da Câmara de Alenquer.
Com os bombeiros muito condicionados, João Mário teve que pedir socorro à base da Ota, mas os militares demoraram a chegar devido às obstruções na estrada. No concelho morreram 66 pessoas, dez na vila. Os prejuízos, segundo as contas feitas na altura pelo presidente da câmara, chegaram perto dos 600 mil euros.
O impacto desta catástrofe atravessou fronteiras e despertou a solidariedade internacional. Grã-Bretanha, Itália, Mónaco, França, Suíça e Espanha enviaram donativos e vacinas contra a febre tifóide. O general De Gaulle, à época chefe de Estado da França, contribuiu com uma dádiva pessoal de 30 mil francos, cerca de 900 euros no câmbio da época.
“Aquilo que se passou não tem comparação no século XX”, garante o historiador Miguel Cardina. “Foi a maior catástrofe natural que se abateu sobre Lisboa desde o terramoto de 1755”, confirma António Araújo.
Novembro de 2017 – © Renascença