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A Aldeia da Luz não mora aqui

O dia 16 de Novembro de 2002 mudou, para sempre, a vida dos habitantes da Luz. Ao mesmo tempo que as águas do Guadiana iam submergindo o velho povoado, a três quilómetros de distância era inaugurada a nova aldeia. Envolta em promessas, parecia fadada para o progresso. Quase 13 anos depois, a maioria dos habitantes ainda não é dona do próprio quintal.

por Dina Soares e Joana Bourgard

É meio-dia na Aldeia da Luz. Apenas o zumbido das moscas e o chilrear dos pássaros quebram o silêncio das ruas largas demais, por onde não passa quase ninguém. Nem pessoas, nem carros, nem cães. Parada no tempo, a nova Aldeia da Luz tem pouco de aldeia e muito de bairro social.

Casas ao estilo alentejano, todas iguais, numa paisagem aqui e ali pontuada por construções estranhamente modernas. Desajustadas. Construída em 2012 para substituir a antiga aldeia, submersa pelas águas da barragem do Alqueva, a nova povoação representava uma promessa de vida nova. Hoje, é um aglomerado de casas no meio de nada.

Uma aldeia postiça

O café Guloso é o refúgio dos homens da Luz. Sentado ao balcão, entre conversas e copos de vinho branco, Manuel Conde Ramalho, de 68 anos, não esconde as saudades da velha aldeia. “Aquela é que era a nossa aldeia, não é esta, postiça”. Guarda de caça, Manuel apresenta-se devidamente fardado e pronto para algum serviço que apareça. Pouco serviço, porque a caça é pouca. As águas invadiram o mato onde viviam os coelhos.

Os coelhos morreram e os próprios habitantes da Luz sentem-se uma espécie em vias de extinção. Manuel lamenta-se: “O meu pai teve sete filhos. Hoje, quem tem um ou dois já faz muito”. Além de não oferecer saídas de emprego, a aldeia surge aos olhos de Manuel como um local pouco apetecível para se viver. “Se alguma coisa de bom fizeram na nova aldeia, foi por engano”.

A culpa, diz, é dos engenheiros. Lembra, a propósito, os esgotos construídos na velha aldeia. “Os engenheiros foram um pedreiro de Mourão e outro lá da aldeia e a obra ficou bem feita. Nunca houve problemas. Aqui houve mais de uns cinquenta engenheiros, para quê?”.

As terras ainda não são de quem as trabalha

Situada no concelho de Mourão, a aldeia da Luz tem actualmente 290 habitantes. Em 2002, quando as comportas da barragem foram fechadas, a velha aldeia, situada a três quilómetros dali, tinha 423 habitantes.

Sara Correia é a presidente da Junta de Freguesia. Nascida, também ela, na velha aldeia, não tem dúvidas de que todas aquelas pessoas foram aliciadas e enganadas.

“A promessa de que o turismo ia dinamizar a economia local ficou por cumprir. A marina e a praia fluvial previstas para aqui nunca passaram do papel. Não aconteceu nada. Com o passar do tempo, estamos cada vez mais isolados e menos interessantes e quem cá vem uma vez nunca mais volta”.

E não foram só os novos negócios que ficaram por cumprir. Muitos habitantes da Luz perderam mesmo o que já tinham. É o caso das terras. Doze anos depois, o emparcelamento continua por concluir.

As pessoas receberam as terras correspondentes às que ficaram submersas mas poucas têm papéis que provem que as terras são suas. Podem cultivá-las mas não as podem vender. As heranças são uma fonte de problemas.

Chagas difíceis de sarar

José Pedro Salema, presidente da Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA), que gere todos a área envolvente da barragem, reconhece que há problemas cuja resolução se atrasou mais do que seria desejável. É o caso do registo das terras.

“A questão é ultrapassável mediante o pagamento das taxas de urgência mas a verdade é que muitas propriedades continuam por registar”. Já no que toca às infraestruturas turísticas, José Pedro Salema não aceita as críticas. “O ancoradouro está lá, mas a construção de uma praia fluvial nunca esteve prevista, até porque não é da competência da EDIA”.

Impossível de resolver, considera José Pedro Salema, é o trauma causado pela mudança. “Obrigar as pessoas a saírem de suas casas abre chagas que são difíceis de sarar”, reconhece. No entanto, garante que a empresa fez tudo para minimizar os impactos. Neste momento, sente-se já desobrigada de proceder a novas intervenções. “Quando cessa a garantia do construtor, que é de cinco anos, cessam também as obrigações da EDIA”.

Tirando a vindima e a campanha da azeitona, pouco mais há

A média de idades da Aldeia da Luz, à semelhança do que acontece por todo o país, é bastante elevada. No concelho de Mourão, ao qual pertence a freguesia da Luz, cerca de 25% dos habitantes têm mais de 65 anos. Não é, por isso, de estranhar que Manuel Pimenta Silva, de 46 anos, seja tido como um dos jovens da aldeia. Manuel trabalha na agricultura, quando há trabalho. Agora, está desempregado. Tirando a vindima e a campanha da azeitona, pouco mais há.

Apesar do regadio, que veio abrir novos caminhos à agricultura, o sector não está a ter o desenvolvimento que os habitantes da Luz esperavam. Manuel culpa a empresa responsável pelo empreendimento do Alqueva. “Embora apareçam pessoas a querer fazer alguma coisa, a EDIA não deixa e acabam por ir embora, investir noutros sítios”.

O médico é espanhol e só vai uma manhã por semana

Foi para fugir a esta incerteza que Edmundo Garcia “emigrou” para Reguengos, a 30 quilómetros da Luz. Comprou casa, constituiu família, mas o desemprego acabou por o devolver à aldeia. Explora o café do sogro, e o negócio vai dando para sobreviver, mas as queixas são mais que muitas. “Isto foi feito à pressa e muita coisa ficou mal. Há problemas nos esgotos, nas próprias casas. A cada ano que passa vão surgindo novos problemas”.

Edmundo desespera pela marina que não vem, substituída por um ancoradouro de difícil acesso e que não convida, quem ali pára o barco, a deslocar-se até à aldeia. O cais tem dez lugares para parqueamento temporário de embarcações, mas em vez dos barcos, são as vacas que dominam a paisagem.

Revolta-se também contra a falta de assistência médica. Consultas, só uma manhã por semana, dadas por um médico espanhol com quem os habitantes da aldeia têm dificuldade em se entender.

Uma escola meia cheia

Diana, a filha de Edmundo, entrou este ano para o jardim infantil da Escola Básica da Aldeia da Luz. Construída em 2002, com pavilhão desportivo e tudo, a escola chegou a constar da lista de estabelecimentos de ensino em risco de encerrar, elaborada pelo Ministério da Educação. Escapou, apesar de não conseguir cumprir os mínimos nem com as crianças trazidas de Mourão para compor as salas de aula.

Este ano, tem 19 alunos, 13 no jardim-de-infância e seis no primeiro ciclo. Desde o começo das aulas, em Setembro, já perdeu quatro alunos, cujos pais foram obrigados a deixar a aldeia (e nalguns casos, o país), em busca de emprego.

Para Dulce e Saudade, as duas professoras, a escola está apenas meia cheia e a esperança é a última a morrer. “Há muitos anos que o jardim-de-infância não tinha tantos meninos. No próximo ano, seis vão para o primeiro ciclo, que vai ficar com o dobro dos alunos e no ano seguinte irão mais quatro”, sublinha a professora Saudade.

Dulce faz questão de contrariar a ideia de que estes alunos ficam prejudicados por serem poucos e estarem longe dos grandes centros. “Como temos poucos alunos, podemos fazer muitas actividades, participar em projectos nacionais, e até internacionais, o que não seria possível com turmas de 30 alunos”. Recentemente, ganharam mesmo uma menção honrosa num concurso europeu. “ O nome da Escola da Luz já é conhecido lá fora”, diz Dulce com orgulho.

As vizinhas são tudo o que resta da velha aldeia

Como o que não tem remédio, remediado está, Josefa, de 74 anos, prefere não alimentar nostalgias. Consola-se com a ideia de que a nova casa, com quintal e garagem, é melhor que a antiga. Conforta-se com a presença amiga das vizinhas que partilham a sua vida há mais de 50 anos. Mesmo assim reconhece que, quando pensa na sua casa, é a velha casa herdade dos sogros que lhe vem à memória.

Josefa toma conta de três crianças, ainda sem idade para irem à escola, num concelho onde não existe uma única creche. São elas que lhe alegram os dias, mas Josefa tem consciência de que, também ali, as crianças são cada vez mais raras. “Não há nada, não há empregos. Eles são muito espertos, prometeram tudo e não fizeram nada. Os mais novos têm de sair para procurar emprego”.

Na Luz, nem morrer se pode

Josefa tem uma casa cheia mas na aldeia há muitas casas vazias, algumas à venda, e quem lá permanece parece ter perdido o espírito de comunidade. A própria geografia da aldeia não ajuda a manter as relações entre os seus habitantes. As ruas são demasiado largas, as casas perderam os tradicionais degraus das portas, onde as pessoas se sentavam para conversar. O Largo 25 de Abril, concebido para reproduzir fielmente o velho largo, é ventoso e desconfortável. Edmundo Garcia acusa os arquitectos. “O outro largo ficava num vale, era abrigado. Este foi feito num cabeço. Ninguém lá pode estar”.

Sara Correia, a presidente da Junta, já percebeu que só os dois bancos de jardim, pintados de encarnado, que vieram directamente do outro largo, é que são ocupados. Os outros ficam às moscas. “ Só restam memórias. A aldeia está totalmente diferente, à exceção da igreja matriz e do cemitério, que foram fielmente replicados”, explica Sara Correia.

O cemitério está cheio e tardam as obras de alargamento

O cemitério é, aliás, a única infraestrutura da aldeia que não chega para as encomendas: “Nem morrer se pode” , desabafa a presidente da Junta. O cemitério está cheio e sem projeto para ser alargado. Embora terreno não falte, não há plano de pormenor nem estudo dos solos, passos essenciais para se proceder ao alargamento do cemitério e que são, normalmente, bastante demorados. “Se acontecer alguma desgraça, se morrerem duas ou três pessoas num curto espaço de tempo, temos um problema”.

O presidente da EDIA garante que, da parte da empresa, o problema está resolvido. “A EDIA já cedeu o terreno e fez o projecto para o alargamento do cemitério. Agora, cabe à Junta de Freguesia fazer a obra”.

Canteiro da Luz

E se é sobretudo o desemprego que tira as pessoas da aldeia, também pode ser o desemprego a fazê-las regressar. José Rui Lopes era professor do primeiro ciclo. Deu aulas durante sete anos mas ao oitavo ano, não foi colocado. Como o pai, natural da Aldeia da Luz, tem uma propriedade de um hectare e meio à saída do povoado, José Rui e o irmão resolveram lançar-se no cultivo de plantas aromáticas.

Com os apoios comunitários, plantaram 90 mil plantas de lúcia-lima, sálvia, tomilho e hortelã-pimenta. O projecto nasceu há dois anos. Hoje produzem entre quatro a seis toneladas por hectare, por ano. Cerca de 90% da produção é exportada para França e outros mercados vêm a caminho. Além disso, criaram uma marca própria, o Canteiro da Luz, com a qual comercializam infusões.

“Fomos pioneiros aqui no concelho, mas agora já há mais dois projectos em desenvolvimento”, diz José Rui. O negócio já é sustentável. Garante, em permanência, o emprego dos dois irmãos e ainda proporciona algum emprego sazonal. José Rui tem ajudado nesta expansão, organizando cursos de produção de plantas aromáticas apoiados pela EDIA, responsável também pelas infraestruturas de rega sem as quais aquele cultivo seria inviável.

A irmã francesa

A 1287 quilómetros de distância, no sul de França, “vive” a irmã mais velha da Aldeia da Luz. Salles–sur-Verdon ficou submersa em 1974, também devido à construção de uma barragem.

O processo foi igualmente traumático.

Todas as casas foram destruídas, a igreja foi dinamitada. Salvaram-se os sinos da igreja e algumas pedras provenientes da fonte e do lavadouro público. Ao contrário do que aconteceu na Luz, a reconstrução de Salles-sur-Verdon ficou a cargo dos próprios habitantes que fizeram renascer a aldeia com o dinheiro das indemnizações.

Apesar das diferenças, a aldeia francesa fez questão de apoiar a portuguesa durante o processo de transição. Os habitantes da Luz foram a França, os franceses retribuíram a visita e, em Maio de 2005, as duas aldeias tornaram-se irmãs. Duas irmãs pequenas e com poucos habitantes. Salles-sur-Verdon, com apenas 233 habitantes, vive hoje sobretudo do turismo. A Luz continua à procura do seu caminho e da sua nova identidade.

© Renascença| Junho 2015



Reportagem: Dina Soares e Joana Bourgard
Imagem, fotografia e edição: Joana Bourgard
Fotografias de arquivo cedidas por: Turismo de Les Salles-sur-Verdon
Músicas:"Rarotonga Dream", Marshall Smith
"Enchanted Paradise", Dan Skinner e Adam Skinner
"Sunbeams", Paul Mottram
"Bougoudani", Boubacar Traoré
Pós-produção:Rodrigo Machado
Motion design e infografia: Rodrigo Machado
Coordenação: Maria João Cunha e Pedro Leal
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