Morte no campo
Foto
 

Acidentes com tratores Morte no campo Morte no campo Morte no campo

Nos últimos cinco anos, morreram em média cinco agricultores por mês em acidentes com tratores. Um arco podia salvar vidas, mas muitas vezes não existe. O problema está identificado há décadas, mas as soluções políticas não avançam. Uma tragédia sem fim à vista.

João Carlos Malta e Teresa Abecasis
 
 

27 de Julho. A data sai-lhe com a precisão de quem frequentemente revisita aquele dia. Ela, como era normal, fazia a comida para o almoço. Ele, como habitualmente, pegara no trator para ir fresar um pequeno terreno a umas centenas de metros de casa, numa aldeia de Santa Comba Dão. O caminho, íngreme e desnivelado, não é fácil, mas ele tinha muita experiência e era “muito cuidadoso”.

O tempo passava, passava, e já era meio dia e meia hora. Jaime não voltava. Maria de Lurdes, a mulher de Jaime, que faz este relato, começou a achar estranho. Foi à procura dele. O que se passou a seguir ainda surge embrulhado na névoa da emoção que subtraiu os pormenores à realidade.

Sabe que chegou “à fazenda” e já viu o trator de pernas para o ar e o companheiro de uma vida debaixo dele. Desatou aos gritos a chamar pelo filho e pelos vizinhos.

“Depois não sei mais nada. Não sei quando o levaram e o tiraram... Não havia nada a fazer”, diz, resignada, a mulher de 63 anos.

 
 

As notícias acabariam por relatar que o marido, que há poucos anos trocara as cartas dos correios pela terra dos campos, acabou por falecer já no hospital de Tondela, depois de ser transportado pelo INEM. Tinha 73 anos.

Jaime Rocha dos Santos é um dos 358 portugueses que morreram em acidentes de tratores desde 2013. Uma média de cinco mortos por mês, mais do que um por semana nos últimos cinco anos. Em 2017, morreram 61 pessoas em acidentes deste tipo, em Portugal Continental.

Uma parte significativa das vítimas tinha mais de 65 anos, conduzia um trator com mais de duas décadas e não estava a usar o arco de Santo António — uma estrutura de metal que é colocada a ladear o habitáculo do condutor e que impede, em caso de capotamento, que a viatura caia sobre a vítima.

A estes números, somam-se 330 feridos graves no mesmo período.

 
Foto
 

Retrato de um drama nos campos

A utilização do arco de Santo António, dizem os especialistas, pode ser a diferença entre viver e morrer. No caso de Jaime, Maria de Lurdes diz que o marido levantava o arco regularmente, mas quando ia para aquele campo ao pé de casa, “às vezes, não punha”. “Se ia para mais longe, fazia-o. Aqui como era mais pertinho, não”, recorda.

No dia em que perdeu a vida, Jaime não estava a usar o sistema anti-reviramento.

Para percorrer muitos ou poucos quilómetros, muitos agricultores teimam em não utilizar este sistema de segurança: porque a viatura tem mais de 20 anos e não a traz acoplada ou porque, pura e simplesmente, o rebatem.

Há várias décadas a vender tratores em Sobral de Monte Agraço e Viseu, José Francisco Penedo, líder da Auto Agrícola Sobralense, não tem dúvidas sobre a razão de os agricultores não usarem estes sistemas.

“São teimosos, dizemos a todos para não baixarem o arco que foi feito para andar para cima. Eu sugiro que, no futuro, os arcos não fossem rebatíveis. Assim, eles não podiam dobrá-los e tinham de andar com eles virados para cima”, sublinha o empresário.

 
 

José Palha, elemento da direção da Confederação de Agricultores de Portugal (CAP), já leva muitos anos a dar e a participar em ações de formação para evitar estes desastres.

Reconhece que acaba por ser desmotivante que, mesmo depois destes anos todos de palestras de norte a sul, o número de mortes se mantenha estável acima dos 70 por ano. Por mais que se esforce, não entende o fenómeno de maneira racional.

“Retirar o arco de Santo António vai contra qualquer lógica. A maior parte dos acidentes acontece por não existir arco ou por estar rebaixado. Isso passa pelo excesso de confiança. As pessoas estão convencidas de que são menos homens por usarem o arco, é uma coisa que não consigo perceber. Nem posso explicar como é que se muda esta mentalidade”, refere.

 
 
Fonte: Dados recolhidos pela GNR. Não incluem acidentes registados na Madeira ou Açores porque nas ilhas esta é uma matéria da competência da PSP. Não existe em Portugal uma autoridade que junte os números todos de acidentes com tratores.
 
 

A maior parte destes acidentes ocorrem em terrenos pequenos, com grandes declives, tipicamente no norte e centro do país, com destaque para os distritos de Bragança (42 mortos em cinco anos), Viseu (40 mortos) e Braga (38 mortos).

Tipicamente ocorrem em terrenos privados (cerca de dois terços), que as autoridades não podem fiscalizar. Apenas um em cada três, em média, acontece nas estradas.

Estes números foram fornecidos pela GNR, que agrega de forma mais completa os dados conhecidos (estão dispersos por várias entidades), e não incluem as regiões autónomas da Madeira e dos Açores. Ou seja, os valores podem ainda ser maiores.

De grupo de trabalho em grupo de trabalho

Há várias razões que concorrem para que o ciclo não se inverta: a falta de formação dos agricultores, o envelhecimento desta população e o excesso de confiança de homens que toda a vida andaram em cima das pesadas máquinas e que julgam que nada lhes acontece e que sabem tudo.

A tragédia repete-se há tantos anos, tantas vezes, que em 2016, o Governo decidiu criar um grupo de trabalho onde se juntaram dois ministérios (Agricultura e Administração Interna), a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, a Autoridade para as Condições no Trabalho, o Instituto de Mobilidade, a GNR e a Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural.

A ideia era que em 2017 já houvesse ideias para reverter a situação e até foram apontadas oito medidas concretas para analisar.

Já não é a primeira vez que o problema se estuda, mas em que nada, ou quase nada, muda.

A Renascença pediu durante mais de dois meses uma entrevista ao secretário de Estado da Agricultura e Florestas, mas a solicitação foi sendo sucessivamente adiada. O pedido de conclusões do grupo de trabalho também esbarrou num muro de silêncio.

 
 

Principais causas dos acidentes

  • A estrutura etária dos agricultores está bastante envelhecida e a situação está a agravar-se;
  • Tratores com mais de 20 anos são mais de 50% dos 170 mil registados;
  • Falta formação para manobrar estas máquinas: só este ano, a legislação passa a prever uma habilitação específica para conduzir tratores;
  • Legislação permissiva em relação às questões de segurança quando comparada com outros países europeus;
  • Falta de cultura dos agricultores para a necessidade de ter estruturas de segurança, principalmente o arco de Santo António;
  • Terrenos com grandes inclinações, sobretudo no Centro e Norte;
  • Taxa de alcoolemia fora dos limites legais.
 
 

Uma das medidas que o Governo queria estudar era a viabilidade de criar inspeções obrigatórias. Até agora, os tratores, apesar de andarem na estrada como outras viaturas, não têm de o fazer. As pessoas ligadas a este sector falam da dificuldade de montar um sistema de centros de inspeção eficaz e acessível para todos.

“Aquilo que seria desejável era que estas máquinas fossem sujeitas a reparações periódicas, a manutenções programadas. As dificuldades financeiras do sector não permitiram que isto fosse feito. Por isso, por mais formação que seja feita, se tudo o resto falhar...”, reconhece o engenheiro agrónomo e técnico da Confagri (Confederação Nacional de Cooperativas Agrícolas) Augusto Ferreira.

Até onde vai a fiscalização

Ao olhar para o problema em pormenor, José Palha, da CAP, vê que a maior parte dos casos não ocorre nas estradas, logo não há hipóteses de serem detetados ou reprimidos pelas forças de segurança rodoviárias.

Esta realidade introduz neste fenómeno uma dificuldade adicional. Nas estradas a fiscalização depende da GNR e da PSP; já dentro das propriedades é responsabilidade da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) – mas apenas em explorações que pertençam a empresas.

“A ACT não fiscaliza um pequeno agricultor que não vende a sua produção para o mercado. A maior parte dos agricultores que morre nestes acidentes [por não ter uma empresa constituída] não são obrigados por lei a cumprir a legislação. Por isso, não é fácil acabar com estes acidentes”, explica Palha.

O major Resende, da GNR de Viseu, também reitera que é nas propriedades privadas onde ocorrem a maior parte das situações. “Aí não temos competência nem autoridade”, explica.

 
Foto
A competência da GNR é limitada: a maior parte dos acidentes acontece em propriedades privadas
 

“Se tivéssemos uma capacidade repressiva dentro de uma propriedade podia alterar para melhor os comportamentos”, reconhece. Mas também reflete que isso traria problemas porque mexe com o conceito de espaço público e privado e até onde o Estado deve intervir. 

As multas para os tratoristas variam entre os 60 e os 300 euros. As causas mais frequentes para as coimas são: falta de documentos, não ter sinal de marcha lenta e a circulação com passageiros no trator, que não está prevista na lei.

Para o major Resende, o reforço das coimas poderia levar a “dissuadir” quem pisa o risco.

É só até ali à frente, não acontece nada

Mas há outras razões para o que está a acontecer há décadas. Numa ação feita pela GNR de Viseu, numa aldeia nas imediações da cidade, junto à igreja local, aproxima-se um trator. Na parte de cima da roda segue uma mulher que aparenta mais de 60 anos.

A Guarda manda parar. Ao volante vem Manuel Carreira. Diz que tem um nome pequenino “para não dar muito trabalho”. Depois de se explicar à GNR, que está ali numa ação pedagógica, relata o motivo pelo qual traz Esperança naquele lugar.

“Trazia-a aqui porque vou para ali carregar abóboras e pus estas tábuas para poder trazer mais e elas se segurarem. Não queria que ela estivesse a subir e passar por cima disto. Mas são 200 metros até chegar ao terreno”, explica.

“Ela já ficou toda aflita [por ter sido mandada parar pela GNR] e já não vai dormir umas noites. É raro ela andar na roda”, acrescenta.

Mas sabe que às vezes bastam poucas centenas de metros para que aconteça um acidente? “Às vezes, até menos de 200 metros basta, é verdade”, afiança.

 
 

Quando lê ou ouve que um agricultor morreu num acidente, o medo de que um dia a notícia seja ele sobe à cabeça de Manuel Carreira.

“Ponho-me a pensar que me pode acontecer a mim, a gente não sabe”, diz, lembrando a morte de um agricultor que nesse dia estava a fazer títulos nas televisões.

Ele não esconde que já abusou muito. “Já desengatei o trator. Agora já não, é como ele [trator] quiser ir, a gente vai. A gente desengatava e andava mais depressa”, recorda.

Vinte anos atrás de Espanha

Manuel não usa o arco. Diz que pensa em pô-lo, mas logo explica o porquê de ainda não o ter feito. “Já falei disso, mas como me disseram que isto tinha de ir à vistoria e ser homologado pela direção de viação [o responsável por esta matéria é o Instituto da Mobilidade e dos Transportes], pensei: ‘Não vou estar a gastar dinheiro sem saber bem as coisas’”, solta. Mas depois afiança que “para a semana já o terá”.

A obrigatoriedade de os tratores estarem equipados com o sistema anti-reviramento surgiu em Portugal apenas em Janeiro de 1994, mas só para as viaturas novas. Em Espanha, por exemplo, desde 1980 só é legal a venda dos tratores se possuírem uma estrutura de proteção anti-reviramento.

A acrescentar a esta medida, desde 1997 que do outro lado da fronteira é obrigatória a instalação do arco de Santo António em todas as viaturas que não o têm de origem.

 
 

Acidentes com tratores na Europa

Os dados recolhidos pela Renascença distinguem dois tipos de acidentes com tratores – acidentes rodoviários e acidentes de trabalho, que ocorrem dentro de propriedades privadas.

A nível europeu, só existem dados relacionados com acidentes rodoviários. Em 2016, registaram-se 5300 acidentes com tratores na Europa, nos quais morreram 335 pessoas. 245 desses acidentes foram em Portugal (4,6%) e resultaram na morte de 21 pessoas (6,3% das mortes na Europa).

Ainda de acordo com os números europeus, entre 2010 e 2013, morreram 106 pessoas em Portugal em acidentes rodoviários com tratores. No mesmo período, morreram em Espanha 78 pessoas neste tipo de acidentes e 13 no Reino Unido, por exemplo. O número de mortos é tendencialmente mais alto nos países do Mediterrâneo: 85 em Itália e 82 na Grécia.

 
 

O mistério

Em Portugal, a grande maioria dos tratores não estão equipados com as estruturas de segurança que evitam o capotamento.

Há 170 mil tratores registados em Portugal, mas há pessoas ligadas ao sector que afirmam que o universo é maior. Ou seja, há muitos que não legalizam as viaturas e existe um mercado de segunda mão de que ninguém sabe a real dimensão.

Das viaturas registadas, cerca de metade tem mais de 20 anos.

O engenheiro agrónomo e técnico da Confagri Augusto Ferreira afirma que a inexistência de obrigatoriedade legal de uma estrutura anticapotamento é “uma questão para a qual não encontramos resposta”.

Se se analisar o número de acidentes rodoviários, acidentes de trabalho e a gravidade que deles resulta, percebe-se que “é oito vezes superior aos acidentes com veículos automóveis”. “Há um problema de legislação e de controlo”, resume.

A atual lei é muito restritiva no tipo e número de arcos que permite colocar. A instalação só pode ser feita com estruturas que estejam homologadas e é definida modelo a modelo.

“Estas estruturas são comercializadas pelas próprias marcas e têm um custo elevadíssimo. Em relação ao valor da viatura, pode haver uma desproporção muito grande”, reconhece o engenheiro.

 
Foto
A legislação espanhola facilita mais a instalação de estruturas de segurança em tratores que não as têm
 

Augusto Ferreira defende que a solução passaria por um sistema que fosse simples e pudesse ser construído numa oficina local. “Seguindo determinadas regras seria uma solução que podia ser económica e eficaz”, acredita, relatando que esta é uma situação que já é adotada em Espanha.

O mesmo técnico da Confragi enquadra ainda a mortandade com tratores no cenário de crise que o país viveu entre 2011 e 2014. As dificuldades económicas e de emprego atuaram em duas áreas distintas: novos agricultores, sem ligações à terra, que, pela inexperiência, estavam mais sujeitos a acidentes; e falta de regularidade na desejável ida ao mecânico destas máquinas devido a dificuldades financeiras.

“Se os pneus não rebentassem, por exemplo, andavam carecas e, claro, mais suscetíveis a acidentes”, resume.

Piões e facilitadores

Antes de Manuel parar na ação de fiscalização da GNR de Viseu, já por lá tinha passado José Balula, de 54 anos. Ele garante que nunca andou com carga a mais – “prefiro ir duas vezes do que arriscar”.

Já cultivou centeio e aveias, mas agora só tem milho e anda sempre de arco levantado. Até porque conhece quem “tenha ido fresar e tenha ficado debaixo do trator”.

Olhando para os companheiros de campo não sobram dúvidas: “Já não temos a mesma idade, os reflexos não são os mesmos. Mas somos teimosos."

“Facilita-se demais. Trazem os travões desengatados. Sai-se a travar só de uma roda, para virar mais rápido, e quando vamos para a estrada não nos lembramos. Depois, aparece o perigo e, não se sabe como, ele gira e tomba”, descreve.

Agostinho Amaral, também ele com muitos anos a conduzir estas máquinas, sentencia que a maior parte dos acidentes se dão por “descuido” e “facilitismo”.

 
Foto
Agostinho Amaral lembra-se de um vizinho que " ficou debaixo de um trator". Histórias frequentes entre quem anda na terra
 

“Às vezes, andam aí a lavrar e fazem um pião de qualquer maneira. Quando dão conta o trator está virado”, ilustra.

José Francisco, da Auto Agrícola Sobralense, diz que, apesar de todos os avisos aos clientes, “pensam que só acontece aos outros, não lhes acontece a eles, e depois quando se dá por isso lá vem uma notícia dessas nos jornais”.

O comerciante diz que os títulos das notícias enganam. “Não é o trator que mata a pessoa”, defende. “É o descuido que faz com que isso aconteça. Muitas vezes, estamos aqui nos terrenos e dizemos ao agricultor: ‘Porque é que vais plantar a vinha tão perto?’ Dá-lhe mais espaço, dá-lhe uma cabeceira maior [espaço entre a última cepa e o extremo da propriedade]. Ele faz as contas e diz que se tiver mais cepas lhe dá mais quilos de uva. Por um lado, isso é produtividade, por outro reduz-lhe a segurança”, exemplifica.

A formação é outra tecla em que bate com insistência. “Deviam fazer todos uma formação, mas daquelas em que eles têm mesmo de ouvir aquilo que temos para dizer e aquilo que sentimos. Não é a gente estar a falar e eles dizerem: ‘Eu sei, eu sei.’ O povo português, não sabendo, diz que sabe: ‘Ah, é igual ao do meu cunhado, é igual ao do meu vizinho’.”

 
 

A agricultura em Portugal:

  • 47% da superfície de Portugal são terrenos agrícolas;
  • 72,3% das explorações são de pequena dimensão;
  • Apenas 2,5% dos agricultores têm menos de 35 anos (média europeia: 5,9%);
  • 8,6% do emprego total (média europeia: 4,7%);
  • Rendimento dos agricultores é mais volátil do que o de outros sectores de actividade;
  • Sector afectado pelo êxodo rural e envelhecimento da população.
Fonte: Folheto da Comissão Europeia sobre a PAC (Junho 2016)
 
 

O engenheiro Augusto Ferreira constata que as coisas demoram muito tempo a alterar neste sector porque é uma área em que estão envolvidas “muitas entidades de vários ministérios”.

Mas, enquanto nada muda, os agricultores continuam a morrer, à média de 70 por ano.

“É um tema com elevado impacto social, algo que marca muito as famílias que dependem da agricultura. Quem passou por uma situação destas dificilmente esquecerá”, remata o técnico da Confragi Augusto Ferreira, também ele tratorista.

 

Fevereiro de 2018 – © Renascença

Foto
Top